2016/04/29

Hospício

Levei tempo a perceber, mas finalmente tornou-se claro. Não é o homem que não quer saber das árvores da ilha. São as árvores da ilha - um jambeiro, uma araucária do Chile, três coralinas da Abissínia e os dois dragoeiros cujas copas se unem no portão do hospício - que não querem saber do homem.

2016/04/27

Caniçado

A casa do Caniçado. No portão, de mão dada à Vitória, espero que a minha mãe chegue do dispensário. Está sol, calor, a luz fere os olhos e ilumina um horizonte aberto, com poucas casas, sem árvores, animais ou gente. No caminho de terra vermelha, ao longe, vejo a silhueta de uma mulher. À medida que se aproxima, percebo que é a minha mãe. Reconheço-a por causa da blusa que veste: branca, com uns estranhos desenhos, animais de longas patas, árvores de copa azul, figuras surrealistas, desfeitas, derretidas, que, a esta distância, associo aos quadros de Dali. Certa de que é a minha mãe, largo a mão da Vitória e corro na sua direcção. Pequena, três, quatro anos, abraço as suas pernas, enterro a minha cara no seu corpo. Só quando a mulher me pega ao colo e, rindo, me entrega à Vitória, percebo que me enganei. A minha primeira memória é de desilusão e perda. Quando a minha mãe morrer, continuarei a procurá-la nos sonhos, nos objectos, nas outras mulheres. E haverá sempre amanhã. 

2016/04/25

Pedras



Poema da Maria Teresa Horta, voz da Teresa Paula Brito, a mulher de olhos claros que cantou "Verdes Anos". Os quatro poemas do disco pertencem ao livro "Minha Senhora de Mim" da Maria Teresa Horta, proibido pela PIDE. Pergunto-me: somos herdeiras dignas das mulheres de Abril? Respondo por mim. Não sou. 

2016/04/22

Ingénua Manuela



(hora de almoço.)

Futuro radioso

Encontro o meu pai já de pijama, sentado em frente da televisão. Beijo-lhe o cabelo, sinto o aroma da loção capilar que usa há muitos anos e sento-me no sofá. O que estás a ver?, pergunto. Não responde. Olha a televisão como se o aparelho fosse uma feiticeira capaz de encantamentos e canções mágicas. O meu pai está hipnotizado. Olho à procura da razão de tal pasmo. Imagens de abandono e desolação. Uma piscina coberta, um tanque profundo, vazio, descarnado, o fundo de ladrilhos soltos. Blocos habitacionais, ruas e ruas, alamedas, avenidas, de blocos de apartamentos, todos iguais, casas que parecem clones, umas atrás de outras, numa arquitectura assexuada, traçada em linhas paralelas e perpendiculares. Ninguém caminha por aquelas ruas. Ninguém habita aqueles apartamentos. Uma floresta rompe os espaços abertos, as raízes grossas tomam conta dos passeios, das estradas e dos cruzamentos. Árvores frondosas, de folhagem brilhante e frutos envernizados, impedem as ruas de receber luz. A cidade é azul e sombria. Centáureas gigantes, carnívoras, mostram os seus cardos roxos. A câmara passa depois para o interior dos apartamentos dos blocos habitacionais. Paredes de tinta estalada, objectos esquecidos. Um cadeirão de braços forrado a napa vermelha, uma cadeira de espaldar tombada. Posters gigantes: Brejnev, Chernenko, Gorbatchov. No parapeito de uma janela estão dois peixinhos de borracha amarela. Pelo chão desses apartamentos, em nichos de lixo e entulho, há bonecas de corpo rijo, pose estática, pernas abertas. Dormem de olhos abertos um sono eterno. Um parque de diversões. A roda gigante tem cabines folheadas de chapa amarela. Campânulas solitárias balouçando ao vento. Há também um carrossel de cavalos que sorriem, mostrando a beleza da sua dentadura equídea. Percebo tratar-se de uma cidade abandonada, uma pompeia soviética. Que cidade é esta, cristalizada no tempo e no espaço, que mostra a beleza do silêncio e do vazio? 

Uma voz explica, por fim, a história daquele lugar. Trata-se de Pripyat, situada a 30 quilómetros de Chernobyl, cidade planeada para acolher cientistas, engenheiros, operários. Tinha um cinema, um teatro com uma grandiosa escada de caracol, várias piscinas, um hotel, muitas escolas e hospitais, possuía todas as infra-estruturas que o regime soviético considerava necessárias para o bem-estar do povo. Habitada por quem trabalhava na central nuclear, a média de idade dos cerca de quarenta mil habitantes da cidade rondava apenas os 26 anos. Para o regime todas as cidades deviam ser como Pripyat, planeadas, organizadas, assépticas, sem espontaneidade ou liberdade, regras claras de distribuição dos habitantes, edifícios para casados, edifícios para solteiros, procedimentos claros sobre a utilização dos espaços públicos. Só se é feliz com regras. Pripyat, cidade modelo, onde o futuro se cumpria no presente.

No dia a seguir ao acidente, a cidade despertou na sua rotina, ignorando a dimensão da tragédia. Um homem pediu à mulher que lhe preparasse um borsch com natas azedas para o jantar; uma rapariga levou para a fábrica uma merenda de conservas de pepino escuro; dois amigos planearam uma pescaria no rio, num recanto fresco, perto de um bosque de abetos, onde nadavam as trutas mais gordas; uma mulher apanhou o comboio para Kiev na estação de Yanov e, ao olhar a cidade sentiu, sem a saber explicar, a tristeza dos espaços vazios. Nessa manhã, a vida continuou como se nada fosse, porém, o bicho invisível já se havia espalhado por toda a cidade, entrara nas casas, gotejara pelos algerozes, penetrara nos solos, espreitara pelas frinchas, procurara o coração dos objectos, dos animais e das pessoas para aí se instalar. A catástrofe chegou à tarde: foram afixados em todos os blocos, em todas as portas, em cada espaço público, avisos de evacuação. Explicavam que a cidade teria de ser evacuada. Era uma evacuação temporária, os habitantes deveriam levar pouca coisa, elementos de identificação, qualquer coisa para comer, deixassem tudo como estava, trancassem os seus apartamentos, voltariam em breve. Depois, chegaram autocarros, mais de mil, vindos de toda a república. Os habitantes de Pripyat nunca voltaram. Ficou a cidade deserta, quieta, envelhecendo. A floresta boreal avançou e cobras radioactivas treparam pelas paredes, aninhando-se dentro do corpo das bonecas que as meninas não puderam levar. Pripyat, cidade modelo, onde o futuro radioso nunca se cumpriu.

O documentário está quase a terminar, o meu pai já tem o comando na mão, prepara-se para mudar de canal. A última imagem que vejo é a de um homem jovem que fala num inglês truncado, próprio dos eslavos. Entra num apartamento, era ali que morava numa perpendicular à Avenida Igor Kurchatov. Aos domingos, explica, entrando num quarto, a minha irmã ia com a minha mãe ao Hotel Polissia preparar o desfile do 1º de Maio, eu ia com o meu pai à piscina e passava horas a nadar. Caminha pelas divisões em silêncio. Fui feliz em Pripyat, diz, por fim. Levanto-me. Volto a beijar o cabelo do meu pai, também ele forçado a abandonar uma cidade e uma vida. 

2016/04/21

Volúpia literária

Às quinze horas e trinta minutos, comecei a estudar o processo do jovem professor. À medida que folheava o processo, lendo relatórios médicos e guias de tratamento, comecei a sentir vontade de fugir, as goelas estranguladas, a habitual sensação de desorientação e desperdício. Às quinze horas e trinta e quatro minutos, levantei-me. Percebi que o choro vinha descontrolado, amarinhava por dentro, em menos de um minuto, haveriam de assomar-se lágrimas aos meus olhos. Fiquei com a visão embaciada, percebi que não tinha tempo para chegar à igreja de Nossa Senhora de Fátima que é o sítio perto do trabalho onde gosto de chorar. Fico ali, na penumbra, perto do altar da Nossa Senhora do Carmo, a contar os anjos dos vitrais e a escutar o chiar dos sapatos ortopédicos das velhinhas no chão encerado. Corri à casa de banho. Tranquei-me no cubículo da retrete. Tapei o rosto com as mãos e comecei a chorar. Mordendo os lábios, sem conter os soluços. É tão bom chorar. Chorar mata a tristeza assim como a água mata a sede. Às quinze horas e quarenta minutos, senti alguém entrar na casa de banho e abrir a torneira do lavatório. Calei o choro e deixei-me estar quieta. Às quinze e quarenta e três, a mulher do outro lado, cansada de esperar, bateu à porta. Aborrecida, sorvi o ranho para dentro. É só um bocadinho!, respondi e comecei a limpar os olhos. O papel encheu-se de preto. Imaginei a minha figura. Deixei-me estar sentada na sanita a olhar o recipiente dos pensos higiénicos. A mulher que esperava foi-se embora. Saí do cubículo da retrete e olhei-me ao espelho. Há poucos suicidas na literatura contemporânea portuguesa. É uma pena. Não há boa literatura sem suicidas., disse para o reflexo. No corredor, cruzei-me com a Linda, colega do quinto piso. Gabei-lhe a cor da blusa. Ela perguntou pelas férias e pelos miúdos. Quis saber se tinha descansado. Muito, muito!, respondi, naturalmente mentido. Detesto férias, feriados, fins-de-semana. Só gosto do Natal. Comove-me o menino deitado nas palhinhas e ainda um dia hei-de fazer eggnog para a ceia. A determinada altura, eram quinze horas e cinquenta e dois minutos, a Linda começou a olhar fixamente para os meus olhos. Entrou-me uma poeira., respondi. Às dezasseis horas, sentei-me novamente à secretária. Olhei a paisagem estática que se vê da janela. Prédios feios, escritórios e hotéis, caixas do ar condicionado, nem um estendal, nem uma cortina, nem uma varanda florida. Há doze anos que olho por esta janela. Voltei a  pegar no processo do jovem professor. Aos trinta anos, foi internado compulsivamente, com um diagnóstico terrível: psicose delirante crónica. Senti-me bastante aliviada por ter apenas depressão crónica. A vergonha que seria para a minha família, sobretudo, para os meus meninos, se eu tivesse uma doença assim. Não chego a ser bem louca, sou apenas, como diz o meu filho mais velho, completamente instável. Quando ele vem com essa conversa, ouvida desde pequena ao meu pai e irmãos, tenho vontade de disparatar. Mentalmente mando-o para a puta que o pariu, que é o meu insulto preferido e serve para toda a gente, mas depois, logo a seguir, lembro-me que a puta que o pariu sou eu. 

(volúpia literária, o caralho.)

2016/04/06

Hora de jantar

Ninguém podia falar. O pai exigia silêncio. De olhos postos no televisor, comendo devagar, prestava atenção às notícias que a locutora ia apresentado. O jantar era sempre assim: o pai vendo o telejornal, os filhos comendo em silêncio, a mãe, em frenesim tardio, depois de um dia de trabalho, despachando o que houvesse a despachar para estar pronta à hora da telenovela. Ana estava bem avisada sobre a postura que devia ter durante a refeição: silêncio absoluto para não perturbar o pai e, se possível, se quisesse agradar-lhe, mostrar interesse nas notícias. Por vezes, distraía-se. Esquecida das ordens, falava com a irmã mais nova. Lúcia era habilidosa com as mãos. Para controlar a ansiedade que o silêncio imposto lhe causava, tinha o hábito de fazer dobragens com as folhas translúcidas dos guardanapos. À hora do jantar, saiam das suas mãos cravos, nenúfares, pequenas rosas.
- Que rosinha tão linda!
- Gostas?
- Ensina-me a fazer…
- Tu não és capaz, Ana!
- Sou sim!
- Tens sempre negativa a Trabalhos Manuais…
- Estúpida.
Riam-se. O pai não dizia nada quando via as filhas alegres, continuava a ver televisão, mas descaíam-lhe os cantos da boca, os olhos ficavam gelados. Carlos, o filho mais velho, chumbara já duas vezes no curso de Direito, era um desgraçado, nunca seria ninguém na vida, as raparigas, via-se bem, iam pelo mesmo caminho. Duas filhas, duas ignorantes que se deslumbravam com flores de papel em vez de se interessarem pelas notícias do mundo. A mãe, aflita, temendo que a desilusão do marido se transformasse em raiva, abria os olhos. “O vosso pai está a ver o telejornal!”, acabava por dizer. Lúcia logo esmagava a flor de papel na mão. Calava-se. Ana fingia não ouvir, mas, quando o pai por fim a mandava calar, desprezo na voz, calava-se também. Aquilo custava-lhe. Sentia então raiva, fazia por se controlar, não podia responder, a resposta poderia desencadear reacções violentas no pai. Ana, nesses instantes, assustava-se: pressentia que se tivesse ao seu alcance uma pedra, uma faca bem afiada, mataria o pai. Mexia com o garfo o arroz branco no prato. Não gostava de arroz branco, mas em casa, para além das batatas a acompanhar o peixe cozido, apenas se comia arroz, sempre branco, sempre cozido em água e sal. O pai só gostava de arroz branco. Observava os azulejos das paredes, a mãe, numa azáfama, de volta do fogão e do lava-loiças. Tudo era triste e desolador: o egoísmo do pai, a subserviência da mãe, a violência contida em cada gesto à hora de jantar.
Passados alguns anos, já Ana e Lúcia eram adolescentes, Carlos saíra de casa para viver num quarto alugado, o pai – talvez por sugestão da mãe – passou a jantar sozinho na sala. Depois de tomar banho, de robe e pijama, sentava-se na poltrona em frente da televisão. Cheirava bem, a sabonete e champô, estava limpo, tinha mãos bonitas, um cabelo espesso, muito preto. Ana sentia vontade de se sentar ao seu lado, mas não era capaz. O pai era um estranho, um homem que vivia na mais completa solidão. Antes de começar o telejornal, a mãe levava o tabuleiro à sala: um pano lavado, o arroz na quantidade exacta, uma costeleta frita, molho sobre o arroz, a acompanhar, um copo de vinho. Voltava depois à cozinha, onde, sentadas à mesa, Ana e Lúcia a esperavam para começar a jantar. Comiam em silêncio. Estavam habituadas ao silêncio. Tudo continuava a ser triste e desolador. Só o pai, concentrado nas notícias, sem ter ninguém a perturbá-lo, parecia agradado com a mudança. A sua felicidade era evidente: estava acompanhado pelo mundo e sua gente, mas livre da família.

2016/04/05

Afectuoso



Contaram-me, mas ainda me custa acreditar, que a Natália Correia não gostava de Bach. Preferia o absolutamente irrelevante Satie: escuta-se com agrado num elevador. Gosto menos um bocadinho da Natália Correia. 

2016/04/03

Lucia Berlin



(Desde sexta-feira, quando li o artigo da Isabel Lucas no Público, que esta mulher não sai da minha cabeça. Edward Abbey, Chinua Achabe, Sherwood Anderson, Jane Austen, Paul Auster. By the time she read the all wall, she was better.)

2016/04/02

Sangue mau

Uma vez por mês, corto o pulso da mão esquerda e deixo escorrer o sangue mau. Assim que me vêem no meio do quintal, sentada na cadeira que foi da minha avó Felicidade, os filhos da vizinha largam as brincadeiras e espreitam pelo muro. A Micaela, pequenina, tem de se pôr em bicos de pés para me ver melhor. O Luís, o irmão, às vezes pega-a ao colo e senta-a em cima do muro. Ficam à espreita, em silêncio. Olham para mim, olham para o céu. Esperam a chegada do abutre. Há muitos pássaros na aldeia, andorinhas, cucos, gaios, até cegonhas, também há outras mulheres que cortam os pulsos, mas nunca aparecem abutres. Assim que notam a sua sombra no céu, os meninos agitam-se. “Mana, olha as asas dele!”, diz o Luís.  “É tão feio…”, diz a Micaela e esconde o rosto com as pequenas mãos papudas. O abutre pousa ao meu lado. Faço-lhe uma festa na cabeça, é um velho amigo, conheço-o há muitos anos. Não perco tempo. Apesar da pele ser dura, estar tão calejada, faço sempre o corte no sítio da cicatriz antiga. Não quero outras marcas no corpo. O sangue mau, de tão espesso, escorre devagar. O abutre bebe-o. Imediatamente, essa a vantagem da sangria em relação a outros tratamentos, sinto alívio, um bem-estar que, apesar de transitório, me serena. A sangria constitui o nervo da cura, é nela que fundo toda a esperança. Quando o sangue se altera, fica claro, fluído, é tempo de parar. Livre do sangue mau, coso os bordos do corte. Faço outra festa na cabeça do abutre. Caminho na direcção do muro. Mostro o pulso aos meninos. O Luís não diz nada. Limita-se a olhar para a cicatriz. A Micaela, audaz, toca-lhe com os seus dedinhos gordos. 

2016/04/01

L'ombre des femmes



Vive-se melhor sem amor.