2016/03/23

Duas alianças

Caiu na esquina da 5 de Outubro com a Avenida António Serpa. Ficou no passeio durante duas horas, em frente da casa da sorte, à espera que chegasse o delegado de saúde pública. O dia de trabalho a terminar, a cidade no tumulto habitual, fiadas de taludas e raspadinhas na montra da casa da sorte e o corpo ali, coberto com um pano azul, fitas amarelas em volta, um polícia a guardá-lo. Gente passava, apressada, a caminho da estação de comboio. Algumas pessoas paravam, apontavam, faziam perguntas ao polícia. Queriam saber do suicida. Fora um homem? Uma mulher? Novo ou velho? E de que andar se atirara? Outras pessoas continuavam o seu caminho mal levantando os olhos do chão. Houve nesse dia um prémio elevado no euromilhões, mas, com um morto à porta, ninguém entrou na casa da sorte. O dono veio cá fora pedir explicações ao polícia. Aquele aparato estava a dar-lhe cabo do negócio. Passara já uma hora e o corpo continuava ali! O polícia procurou acalmá-lo, o delegado de saúde pública já vinha a caminho e, assim que elaborasse o auto, os serviços camarários haveriam de limpar o sangue das pedras da calçada com jactos de alta pressão. Eram assim os procedimentos legais. O dono da casa da sorte preparava-se para responder quando uma rajada de vento levantou o pano azul e mostrou um braço, a manga de um casaquinho cor de vinho, o início de uma mão velha, a pele coberta de manchas, duas alianças num dedo magro. O dono da casa da sorte calou-se, o polícia desviou o olhar e os castanheiros da Índia romperam em verde primaveril.