2016/02/26

Casaco preto

Para além de pinhas e outros tesouros que encontro e lá enfio (uma bolota e duas pedrinhas), pelo bolso roto do casaco preto caem canetas, lápis, isqueiros, grampos, elásticos de cabelo, moedas, batons. Enquanto caminho sinto o peso do lixo que se acumula no forro do casaco e escuto o tilintar abafado das moedas. E é tudo. É sobre o nada que gosto e sei escrever. 

2016/02/24

Três palavras

Três palavras maldosas, ditas com segurança por uma mulher desprezível, feia, velha, de mamas caídas, e, passados cinco dias, continuo irritada, as ideias confusas, um persistente mal-estar, furiosa comigo mesma por não a ter mandado para o caralho. 

2016/02/23

Labirinto

Acordei triste, sem vontade de ir trabalhar e com uma dor lancinante nas costas. Levantei-me com dificuldade e, só quando me despi para tomar banho, reparei que tinha um pequeno punhal enterrado nas costas. Não tentei tirá-lo. Em alternativa, tomei um comprimido para as dores e fui passear para a Amadora. Caminhei durante três horas. Devagar, apanhando sol, em habitual e despreocupada contemplação. No átrio do Centro Comercial Babilónia, um homem que entrançava o cabelo de uma mulher gorda, ao ver-me passar, apontou para as gotas de sangue no chão. “Não se preocupe. É apenas um rasto que vou deixando para depois conseguir sair do labirinto.” Caminhei durante mais algum tempo. Só parei quando passou o efeito do analgésico e voltei a sentir a lâmina enterrada nas costas. Apanhei o comboio de volta para casa. Tomei outro comprimido para as dores e limpei o sangue seco na minha pele. À noite, deitada de barriga para baixo, escrevi ao Ricardo. “Hoje fui passear à Amadora e acordei com um punhal enterrado nas costas, mas não é por isso que te escrevo. Ando triste. Queres ir almoçar?” O meu amigo ligou-me passados cinco minutos. É um grande amigo. O melhor que se pode ter.

2016/02/20

Sopa de peixe

A minha mãe matou-me muitas vezes. Da primeira vez, era ainda pequenina, cabia dentro da sua mão, atirou-me ao mar. Da segunda vez, começava a dar os primeiros passos, aos tropeções pela sala do crocodilo amarelo, atirou-me ao rio. Quando tinha seis anos, no tempo em que usava o cabelo preso em duas tranças e passava o dia a soletrar palavras difíceis, pôs-me a dormir e ligou o gás do fogão. Devia ter dez anos quando misturou veneno na sopa de peixe. Sabia que, por ser a minha sopa preferida, a comeria até ao fim, raspando o prato até não sobrar uma gota. Aos treze anos, num domingo de tempestade, os relâmpagos caiam no monte de ervas altas, afogou-me na banheira. Aos quinze, já não esperava que o fizesse, sufocou-me com a almofada de veludo azul. Ontem, dia em que fiz dezoito anos, a minha mãe levou-me ao último andar da torre onde vivemos e empurrou-me. Cansada de morrer, olhei para as mãos da minha mãe, paralisadas no ar, e voei para longe. 

2016/02/17

O gigante de Gulpilhares

Ontem, em Gulpilhares, num quarto com uma janela a dar para um quintal cheio de lixo e duas velhas magnólias de flores roxas, deitei-me com um gigante. Adepto do FCP, o gigante, apesar de doutorado em matemáticas aplicadas à gestão, não me pareceu um homem muito inteligente. Custou-me acompanhar a sua passada. É um estranho homem. Tem apenas um enorme olho na testa. É um só olho, mas vale por muitos: um belo olho redondo, de longos cílios revirados. Cada mão do gigante é do tamanho de uma melancia, cada pé do tamanho de um melão. A cabeça, grande como a de um boi, assusta a princípio. Mas, apesar das proporções gigantescas, pantagruélicas, e da estupidez evidente, foi o desconhecido mais afectuoso com quem já me deitei. Primeiro levou-me a ver o mar barrento e feroz, depois, no quarto com a janela que dá para as duas magnólias floridas, enterrou-se tão fundo que tive medo que me rompesse o avesso. À despedida, gentil, deu-me um prolongado beijo no rosto, tirou um cabelo branco caído na lapela do casaco preto e ficou à beira da estrada a ver-me desaparecer. “Liga-me quando chegares, pequenita.”, disse e o carinhoso uso do diminutivo deu-me vontade de chorar. Choro agora por tudo e por nada. Deve ser da idade. Voltei para Lisboa dorida, a sentir o cheiro do gigante nos pulsos, mas satisfeita. Ando cansada de pilas intelectuais, traumatizadas, existencialistas, titubeantes. Grande e grossa, ainda que versada em matemáticas aplicadas à gestão e, em certos momentos de maior entusiasmo, capaz de me provocar o vómito, a pila do gigante, de tão primitiva e animal, reconciliou-me com o mundo, seus insectos, pássaros e árvores. Quando parei na estação da Mealhada para comprar uma sandes de leitão para o meu filho mais velho (para os mais novos, se vou ao Porto, levo croissants tipo brioche da pastelaria Chaimite), ao sair do carro, pensei no quanto detesto a escrita da Ana Teresa Pereira e a poesia de certas novíssimas poetas portuguesas. Inveja pura: na verdade, não lhes invejo os versos, mas a juventude, os longos cabelos com vida, a pele macia, cheia de luz, os corpos tenros. Também deve ser da idade, esta inveja mesquinha que sinto. Na casa de banho da estação de serviço, para não me sentar no tampo da sanita, apoiei as mãos na parede e, enquanto escutava sair o jacto de mijo, morno e bem direccionado, pensei no gigante  à beira da estrada: o seu esplendoroso único olho ligeiramente embaciado, a mão a dizer-me adeus. Voltei a ter vontade de chorar. Não havia papel higiénico. Abanei o corpo para sacudir as pinguinhas.

Império Romano



(Enganei-me. A canção mais bonita do mundo é esta.)

2016/02/14

Dádiva

"Bom, hei-de procurar o amigo do Beuscher, e na Páscoa conto fazer uma visita ao Clarabuts. Posso-lhes oferecer juventude, entusiasmo e amor para compensar as minhas ignorâncias. Sinto-me tão estúpida: se o fosse, no entanto, não me contentaria com alguns homens que conheci? Ou será por estupidez que não me contento? Não me parece. Anseio tanto por alguém que varra de  vez o Richard; acho que mereço, sim, mereço, um amor ardente com que me seja possível viver. Meu Deus, como eu adorava cozinhar, e arranjar uma casa, e instilar força nos sonhos de um homem, e escrever – um homem que soubesse conversar, caminhar, trabalhar e desejar com paixão levar por diante a sua carreira. É-me insuportável pensar que este potencial de amor e dádiva vá acabar por secar e murchar dentro de mim." Assim escreveu Sylvia Plath no seu caderno de apontamentos. Compreendo-a bem: um homem que saiba conversar e caminhar é difícil de encontrar. Talvez seja mais fácil encontrar uma mulher. 

Lucidez

"Quis publicar um livro mas nunca o chegou a fazer, porque estava continuamente a fazer alterações no manuscrito, e fez tantas e tão grandes que, por fim, do manuscrito já nada restava, a alteração do manuscrito nada mais era do que a eliminação total do manuscrito, do qual por fim nada mais ficou do que o título O Náufrago. Agora tenho apenas o título, disse-me ele, assim é que está bem. Não sei se terei forças para escrever um segundo livro, parece-me que não, dissera ele, se O Náufrago tivesse sido publicado, disse ele, teria sido obrigado a matar-me."

Thomas Bernhard, O Náufrago 

2016/02/13

Pedra-pomes

No rebordo da banheira da casa de banho dos meus pais, no apartamento da Portela, ao lado dos frascos de champô e gel de banho, havia sempre uma pedra-pomes. Servia para a minha mãe raspar os calos dos pés. A cor da pedra-pomes, bonita e esbatida, variava: verde clarinho, azul clarinho, cor-de-rosa clarinho. Era leve, porosa e flutuava na água. Passava a mão pela superfície daquele pequeno rectângulo do tamanho de um sabonete e sentia a sua rugosidade. Com o uso, o contínuo raspar das peles duras dos pés da minha mãe, a pedra perdia a forma inicial. Suas arestas deixavam de ser aprumadas, verticais, para ganharem curvas acentuadas que tornavam maior a minha estranheza. Perante a evidente desadequação entre nome  e objecto - as pedras  eram sólidas, compactas, pesadas, afundavam-se quando tentava fazê-las saltar na ribeira de São Bartolomeu  - perdia certezas, tornava-me desconfiada. 

India Song

2016/02/11

Gato

Enquanto espero que a massa coza, depois de lavar o chão da cozinha e preparar o almoço dos miúdos para amanhã, ponho o cd dos Concertos de Brandenburgo a tocar e abro o livro sobre a bancada de mármore. Leio de pé. Gosto de ler de pé, assim como gosto de ler sentada na minha secretária de trabalho, no banco. Fica o corpo completamente desperto e leio com concentração. Começo a ler, um lápis de dois bicos na mão para sublinhar frases ou apenas palavras. É leitura que me interessa. Estou neste agradável desassossego até que o gato salta do chão e vem sentar-se entre o leitor de cds e o meu livro. Lemos os dois. Escutamos os dois. Eu leio com emoção. Escuto com emoção. Sem sentimentalismo, com contido entusiasmo, mas com emoção. Não sei ler de outra maneira, não sei escutar de outra maneira. O gato não. A sua altivez felina, a aristocrata sobranceria, reconduz-me à minha pequenez, à minha insignificância. Petulante, como se quisesse desmerecer a minha alegria por, ao final do dia, ler enquanto espero que a massa coza, caminha devagar e senta-se em cima do livro. Esqueço a leitura e, com um toque leve, afago o seu peito até o sentir vibrar. 

Paris Texas

2016/02/09

Fantasmagoria

Sentei-me num banco a vê-los brincar à volta da oliveira do tronco oco. Esperei pela chuva. Pensei na Maria Gabriela Llansol: descascava ervilhas enquanto escutava Bach. Pensei também na Hilda Hilst. Envelheceu numa casa habitada por espíritos, rodeada de cães, com unhas sujas e cigarros que se apagavam nas mãos. Escrevia perto duma figueira centenária. Hilda Hilst nunca teve filhos. Não quis. E Maria Gabriela Llansol? Também não (acho que não). Só mulheres livres, sem filhos, são capazes de se desembaraçar da normalidade. Quando senti o primeiro pingo de chuva no rosto, tirei a agenda da mala e fiquei a olhar para as páginas em branco. 

2016/02/08

Andorinhas

Não é só a dor de cabeça, essa estranha dor com que acordei e que parece concentrar-se por cima do olho direito. Sinto também tonturas e uma repentina sufocação provocada pelo excessivo aquecimento da piscina.  Deixo o jornal, os óculos e a mala na bancada e corro à casa de banho mais próxima. Debruçada sobre a sanita, mãos apoiadas na parede, vomito até ter certeza de que não tenho mais nada no estômago. À saída, depois de bochechar, olho-me no espelho. Não penso em nada, nem nos cigarros que fumei, nem no vinho que bebi. Não penso sequer no sonho que tive. Sinto apenas alívio por estar melhor e ser capaz de tratar do meu filho quando a aula de natação terminar. Volto a entrar na piscina. O Joaquim, em cima de uma prancha, prepara-se para mergulhar. A cor da prancha, um azul celeste muito esbatido, traz-me à memória uma casa que já não existe. Ficava à beira da estrada nacional, entre Sacavém e a Bobadela. Era uma vivenda azul, de janelas largas, com um pequeno jardim abandonado e beirais cheios de ninhos de andorinha. Sempre que passava na estrada nacional, a caminho do infantário, em Lisboa, invejava os desconhecidos que moravam naquela casa. Imaginava que devia ser bom estar à janela, ou no meio do pequeno jardim, a observar o voo das andorinhas. Sento-me na bancada. Sinto nos dentes e na língua a adstringência que o vómito deixou. A recordação da vivenda azul dá-me vontade de chorar. 

2016/02/06

Tapada do Mocho



("As flores que hoje apanhámos são tão bonitas que parecem artificiais.", diz o Joaquim. Beijo-o e, apontando para o ecrã do computador, cheia de alegria, mostro-lhe a música que escuto enquanto, no meu habitual cansaço de sábado, bebo e fumo. É só ao sábado, ao sábado preciso de fumar e de beber. A beleza das flores que apanhámos durante a tarde, camélias plantadas pelo meu pai na Tapada do Mocho, é como a música que me alivia o cansaço. De tal forma assombrosa, extraordinária, que custa acreditar na sua autenticidade. Glenn Gould, o virtuoso louco, desprezado por muitos, por mim amado, muito amado, gemia enquanto tocava Bach. Não gostava de Mozart. Um a um, filho no colo, tiro os grampos que me prendem o cabelo e penso no meu amor.)

2016/02/04

Moça

2016/02/03

Lenço preto

Ia alternando: ora ficava em casa de Solange, ora na de Adélia. Gostava mais de ficar na vivenda de Adélia onde tinha um quarto só para si e um quintal onde se entretinha a arrancar as folhas secas das roseiras e os joios que cresciam nos canteiros. No apartamento de Solange sentia-se presa, passava muito tempo à janela da cozinha como se só aí, no parapeito, observando o movimento da rua, conseguisse estar. Nesse Natal, chegou muito debilitada, o corpo cada vez mais torto e respirando com dificuldade. Toda a vida sofrera de falta de ar sem nunca lhe ter sido feito um diagnóstico ou proposta qualquer terapêutica. Em Felicidade notava-se um permanente arfar pesado, mas sempre que se sentia mais aflita recorria a mezinhas antigas: tomava chá de folhas de eucalipto e, por conselho de uma vizinha de São Bartolomeu, nos últimos tempos, fumava cigarros feitos com as folhas secas de uma planta que crescia nos terrenos arenosos junto da ribeira. Às vezes, para acalmar a chiadeira das secreções, também usava as folhas da planta em cataplasmas que aplicava no peito antes de dormir. Solange aceitava os remédios caseiros da mãe, mas torcia o nariz quando a via na casa de banho, sentada na sanita, fumando aqueles estranhos cigarros.
- Isso tem algum jeito… – dizia com paciência, sorrindo, mas achando tudo aquilo disparatado e até um pouco triste.
Nesse último Natal, nem os cigarros que fumou, nem os chás que bebeu nem sequer as cataplasmas que aplicou surtiram efeito. Tossia muito, cada vez mais. Às vezes, parecia quase sufocar; nos intervalos, abria a boca como uma carpa chinesa e respirava fundo para sentir o ar chegar aos pulmões. Os ataques provocavam-lhe constantes perdas urinárias que faziam com que largasse um cheiro adocicado de urina e exsudação. Era um cheiro intenso, enjoativo, mas que não causava a Solange propriamente repulsa. Notava, porém, o desconforto do marido e das filhas quando, sentados a ver televisão, viam Felicidade chegar da cozinha e sentar-se a seu lado.

Nessa manhã de Dezembro, ainda de robe traçado, o cabelo num desalinho, Solange arranjava um pedaço de carne para fazer o almoço. Preparava-se para cortar os pés de porco, rijos como cornos, de uma brancura, tão lisa e fúnebre, que faziam lembrar cotos de estearina ardendo em tocheiros de santuários e capelas. Cortado, o chispe cozia melhor, bastava meia hora na panela de pressão e ficava gelatinoso, tenro, desfazia-se em lascas.
Foi então que Felicidade entrou na cozinha. Cheirava pior do que costume, um bafo excessivo parecia libertar-se do seu corpo e espalhar-se, não só na cozinha, mas por todo o apartamento. Solange notou-lhe uma grande mancha na bata e, sentindo uma tristeza repentina, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Não querendo revelar essa fraqueza à mãe, continuou o que estava a fazer. Ergueu o cutelo e procurou localizar as articulações para não falhar o corte. Com um golpe vigoroso partiu em dois o chispe, mas, foi tal a força que imprimiu ao gesto, que se rachou a tábua de cozinha. O periquito, que afiava o bico na pedra de cálcio, amedrontou-se e piou de um modo esquisito.
- Mãezinha, antes do almoço, vou dar-lhe banho, está bem? - Disse Solange, enquanto metia a carne na panela de pressão. Pressentia que o cansaço de Felicidade já não lhe permitia tratar sozinha da sua higiene. A mãe anuiu como se não entendesse bem o significado do que a filha dizia.

Solange aqueceu a casa de banho para evitar constipações, encheu a banheira de água tépida, colocou a roupa interior a aquecer no radiador a óleo. Depois, com cuidado, ajudou a mãe a despir-se. Tirou-lhe a bata, a saia, a camisola, a combinação, as meias de lã que usava sempre presas com uma liga de elástico preto. Felicidade ficou apenas de cuecas e sutiã, de lenço na cabeça.
 - Vá, vamos lá tirar o resto! - Disse Solange com despacho, disfarçando o desconforto que a iminente revelação da nudez da mãe lhe provocava.
Felicidade porventura já não sentia o corpo vivo ou talvez estivesse demasiado cansada para sentir vergonha. Tirou as cuecas e desapertou os colchetes do sutiã com uma naturalidade que impressionou Solange. Deixou-se ficar nua, de pé, em frente da filha: corpo exposto, mas de lenço na cabeça.
- Tire lá o lenço! Há quanto tempo é que essa cabeça não é lavada em condições? – Perguntou Solange e, desviando o olhar das mamas e do sexo da mãe, fez um gesto para lhe tirar o lenço.
Felicidade recuou, levando as mãos à cabeça. Solange estranhou o gesto: a mãe parecia não ter vergonha de estar nua à sua frente, mostrava-lhe com uma estranha desenvoltura a plenitude da sua nudez enrugada, assexuada, mas recusava revelar-lhe essa outra nudez. Sabia que o lenço era uma espécie de segunda pele para a mãe. Na aldeia, todas as mulheres mais velhas ainda o usavam: com um nó apertado por baixo do queixo ou, nos dias de mais calor, atado atrás do pescoço. Que se lembrasse, só uma mulher mais velha andava sempre de cabeça descoberta. Era a irmã da Preciosa, mas essa tinha desculpa: para além de muda, era meio atrasada. Passava os dias a comer caramelos e a embalar bonecas na aduela da porta. Pois, com excepção da muda, todas as mulheres da geração da mãe usavam lenço; o lenço era um sinal de honra, de dignidade, sobretudo de respeito pelos maridos mortos.
Felicidade continuou a teimar como uma criança, agarrada ao lenço preto. Solange acabou por se irritar com a teimosia e fez-se ríspida: chegou perto da mãe e, com brusquidão, arrancou-lhe o lenço da cabeça. Viu um crânio liso, muito lustroso, calvo. Apenas um penacho de cabelos brancos nasciam no cocuruto, tornando ainda mais triste a sua aparência. A mãe era completamente careca.
- O cabelo começou a cair quando o paizinho morreu… – Explicou Felicidade tapando a cabeça com as mãos. – Fiquei sozinha, filha, tinha muitas saudades dele! Quanto mais triste me sentia mais o cabelo me caía. Foi caindo, caindo até ficar assim…
Solange voltou a sentir vontade de chorar. Colocou o lenço na cabeça da mãe, atando-o atrás para que não se molhasse. Depois, ajudou-a a entrar na banheira e deu-lhe banho, já sem estranhar a sua nudez. Lavou-a como se fosse uma criança, notando a fragilidade daquele corpo sempre escondido do sol: uma vida de trabalho no campo e a pele lisa, tão branca. Lavou-a com vagar: tronco, pernas, braços, os pés cheios de calosidades. Sentada na banheira, nua, o lenço atado na cabeça, Felicidade parecia não se sentir desapossada do seu corpo. Às vezes sorria à filha como que a dizer-lhe que lhe sabia bem a ternura daquele momento.

(A minha avó chamava-se Felicidade.)

Periquito

Bebo uma cerveja na varanda da cozinha. O João pana as últimas coxas de frango com cereais moídos e farinha temperada com cominhos, pimenta e sal. O óleo borbulha e o Joaquim anda por ali a cirandar nas pernas do irmão mais velho. Digo-lhe que vá para dentro. Gosto que o João se ocupe do jantar, mas não gosto de frituras, assusta-me o óleo a ferver. Pedi-lhe que fizesse outra coisa, mas o meu filho, maravilhado com os truques da cozinha moderna aprendidos na televisão, insistiu na ementa. Imagino um acidente grave, a frigideira instável, óleo quente a saltar, a pele clara e macia do rosto do Joaquim queimada para sempre. E se, por causa da teimosia do mais velho, acontecesse alguma coisa ao mais novo? Como reagiria eu? Seria capaz de continuar a amar o João como amo? Ou algo se alteraria para sempre entre nós? A ideia de que alguma coisa possa perturbar a nossa felicidade provoca em mim uma terrível inquietação. “ Não ouviste o que disse?”, ralho ao Joaquim e, puxando-o com brandura pela orelha, levo-o para a sala. 

2016/02/02

Rasgão

Enfio a mão e, com o dedo indicador bem espetado, procuro perceber o tamanho do rasgão. A repetição do gesto tem consequências óbvias: aos poucos, o buraco do bolso esquerdo do meu casaco preto vai aumentando. Suponho que no fim do Inverno o rasgão será de tal forma grande que, quando a enfiar no bolso, a minha mão não terá apoio, ficará suspensa na escuridão do avesso do meu casaco preto. Como um corpo baloiçando à beira do precipício. Hoje, na Praça de Londres, depois de sair do consultório do psiquiatra, apanhei cinco minúsculas pinhas do chão. Caídas dos cedros, as pequenas pinhas, com os seus buraquinhos simétricos, banhadas de luz e esquecidas no ruído da cidade,  maravilharam-me ao ponto de ficar parada no meio da rua a olhar para elas. Apanhei-as, cheirei-as e, uma a uma, enfiei-as pelo rasgão do forro do bolso.