2015/12/16

Lustre

Uma vez por mês, a pesada mesa de pau-preto era afastada para um canto da sala de jantar. A minha mãe colocava o escadote no meio da divisão e subia até ao último degrau. Assim empoleirada, procurando manter o equilíbrio, com um pano na mão, muito cuidado, limpava, um a um, os pingentes do lustre da sala de jantar. A tarefa, de tão delicada, exigia-lhe paciência. Passava o pano embebido em Ajax por cada pedaço de vidro, esfregando-os até que, libertos do pó acumulado de muitos dias, voltassem a brilhar. Estava naquilo muito tempo, seguindo uma ordem pré-estabelecida: começava por limpar a fila maior, junto ao tecto, ia descendo a cascata de vidrinhos até chegar à fila mais pequena que rematava com uma enorme bola de vidro. Quando terminava a tarefa, baixava os braços de cansaço. Talvez olhasse pelos vidros da janela e observasse, nos apartamentos do prédio em frente, outras mulheres que, como ela, arrastavam, limpavam, varriam, repondo, num afã dominical, a ordem do lar. Imagino que a comunhão com essas outras mulheres a entristecesse um pouco. Como eu, a minha mãe sempre foi muito sentimental, um pouco dramática, sempre sentiu um desejo de fuga. O periquito, com os seus guinchos, despertava-a desse torpor de reflexões inconsequentes. Ainda empoleirada no último degrau do escadote, chamava por mim. 
- Anita, filha, vem depressa acender a luz!
 Vinda do quarto, o coração acelerado, acorria ao chamamento: sabia que me aguardava um instante de maravilha, mas também o desempenho de uma tarefa importante. Assim que acendia a luz, a minha mãe sorria. 
- Já viste Anita? Dá uma trabalheira limpar estes vidrinhos todos, mas vê como agora reflectem tantas cores!
Era verdade. Cada pedaço de cristal, como se de um pequeno sol se tratasse, reflectia todas as cores que eu conhecia: verde, lilás, vermelho, amarelo, laranja, azul. Semicerrava os olhos e, focada num dos brincos de vidro do grande lustre, procurava apenas o lilás. Gostava naquela altura do lilás. Era a palavra que designava a cor, tão diferente das outras, e a indefinição, a fluidez entre o roxo e o violeta. Se um pingente não reflectisse o lilás era sinal de que, na sua azáfama diligente, a minha mãe se descuidara e o deixara coberto de pó. 
- Aquele ali não brilha, mãe!- Dizia-lhe e apontava para o local onde teria de voltar a passar o pano.
- Vá, agora, apaga a luz. Não podemos desperdiçar electricidade! É muito cara. - Respondia quando eu me calava, finalmente saciada de lilás. Eram tempos diferentes, de carestia, com cinco contos enchia-se um carrinho de compras, mas comíamos muitas vezes massa com atum, fatias de beringela panada, fiambrino, açorda de tomate. 
Obedecia à minha mãe, carregava no interruptor, desejando que anoitecesse depressa para voltar a procurar o lilás no lustre da sala de jantar. Às vezes, porém, antes que desligasse a luz, a minha mãe pedia-me que aguardasse um pouco. Descia então do escadote e, sorrindo de um modo diferente, andava também ela à volta do candeeiro. Nesse instante, percebia que as angústias da minha mãe, os gritos que tanto me magoavam durante as discussões com o meu pai (vou lá acima e atiro-me cá para baixo!), enfim, toda a sua tristeza e raiva eram compensadas pela satisfação de ver o lustre da sala de jantar bem limpo. A minha mãe já não sorria para mim, sorria para a luz colorida dos vidrinhos. Espiava-a nesse arrepio de alheamento, sorrindo, esquecida de mim e dos meus irmãos, esquecida do meu pai, da tia Dé, esquecida de tudo e de todos. Olhava para a minha mãe encadeada pela luz e amava-a mais e mais e mais.