2015/11/25

Gunga Din

Li a mensagem do Tiago a desmarcar o nosso encontro. Fiquei irritada. Quem é que escreve a palavra “miasmas” numa sms? Senti-me também estúpida, muito estúpida. De manhã, por causa dele, maquilhara-me com cuidado, escolhera o sobretudo cintado preto e os sapatos de saltos altos que comprei em Bilbau. São bonitos, mas apertam-me os joanetes. Para me livrar da irritação, decidi ir ao cinema. Ao meio-dia, no Monumental, vira no jornal, passava “Um anjo sentado à minha mesa”, da Jane Campion. Saí a correr do escritório. Caminhei apressadamente enquanto falei com a minha irmã ao telefone. Falámos da nossa mãe, do aniversário do Pedro, dos bilhetes para a festa de Natal. Cheguei cansada, cheia de dores nos pés. Na parede do Monumental, um cartaz anunciava a reposição das três cores do Kieslowski. Dezembro vai ser um mês bom: hei-de rever o velho juiz, com ele beberei copinhos de aguardente de pêra.  Era capaz de amar um velho assim, que me confessasse, não as suas glórias, mas a sua mesquinhez, não a sua força, mas a fragilidade porosa dos seus ossos. Um velho que me oferecesse copinhos de aguardente de pêra. Mal as luzes da sala se apagaram, libertei-me dos sapatos de saltos altos. Aguentei o filme durante três horas. Não é grande coisa. A actriz que faz de Janet Frame, com as suas momices de louca, irritou-me. Adormeci quando é internada no hospício. Ando cansada e os estereótipos dão-me sono. Os loucos não são assim. Acordei com o grito de uma anã. Voltei a acompanhar a história da escritora neozelandesa. Janet já não tem os dentes podres e conhece um velho escritor que gosta de apanhar banhos de sol nu. O velho dá-lhe vários e preciosos conselhos para que possa desenvolver a sua arte. “Tens de libertar-te dos subúrbios. Não podes escrever no meio de acomodados e burgueses”, diz o velho. Que parvo! Na confortável escuridão da sala de cinema vazia, ri-me de tamanha estupidez. Há velhos e velhos. Quando o filme terminou, contrariada, voltei a enfiar os pés nos sapatos de saltos altos. À saída, a luz de inverno animou-me. Parei no Galeto. Comi dois croquetes ao balcão. Bebi uma imperial. Voltei para o trabalho. No cruzamento da Avenida da República com a João Crisóstomo, num semáforo, perdi a capa de um salto. Continuei a andar. Manca e dorida. Ao bater nas pedras da calçada o salto do sapato fazia um estranho ruído metálico. Lembrei-me do bico de um melro a bater no vidro do carro do meu pai, numa manhã de neblina, em Goa. Para não me esquecer, para nunca me esquecer, sentindo o frio no rosto, repeti para dentro: Dylan Thomas, Gunga Din, Dylan Thomas, Gunga Din, Dylan Thomas, Gunga Din…