2015/06/04

Bravura

Na aldeia, para além do Luís, não há quem lá queira trabalhar. Os homens preferem ir gerindo os cursos de formação profissional e os subsídios de desemprego. As mulheres fazem sopas de tomate com peixe frito para o almoço e educam os filhos nos intervalos dos programas de televisão. Só os búlgaros e romenos aceitam trabalhar nas malhadas. Não são de dar confiança a ninguém, pouco sorriem, não frequentam o café da associação de moradores, mas a Mena diz que são bons trabalhadores. Trabalhar nas malhadas é duro: alimentar centenas de animais, medicá-los, pesá-los, manter as boxes limpas, suportar as mordeduras das parideiras, não temer os varrascos, enormes porcos de pêlo escuro e dentes afiados, que, parecendo pré-históricos, se destinam unicamente à cobrição. 

Por isso, quando o meu filho João, há quatro anos, me perguntou se podia trabalhar nas malhadas, expliquei-lhe que apreciava a sua iniciativa, mas que aquilo era trabalho para homens feitos, não para rapazinhos de doze anos. Perante a sua insistência, acabei por falar com a Mena. “Deixa-o vir. Só lhe faz bem. Arranjo qualquer coisa para ele fazer e no fim dou-lhe uma nota!”, disse a minha prima, sempre sorridente, sempre bonita. Nessas férias, durante duas semanas, o meu filho mais velho trabalhou nas malhadas. Disciplinado, levantava-se às seis da manhã, vestia o fato-macaco, tomava o pequeno-almoço sozinho. Às seis e meia já estava à porta da casa da Mena para irem buscar os búlgaros e os romenos às Minas do Lousal. Trabalhava só até ao meio-dia. Nunca percebi ao certo o que lá fazia, só sei que, à hora do calor, quando regressava a casa, subia a única rua da aldeia com ar satisfeito. Sujo, tisnado, largando um cheiro fétido a merda de porco, mas satisfeito. As vizinhas mais velhas, a Antónia, a Teresa e a Preciosa dos queijos, vendo-o passar, metiam-se com ele. O calor a pesar-lhe no corpo e ele, gentil, parava a conversar com as velhotas. As velhacas das velhas riam-se, gozavam um pouco o prato. “Ai João, ai mocinho, deixa lá os porcos, vai mas é para a praia com a mãe e os manos.”, diziam, incapazes de perceber por que razão um rapaz da cidade havia de querer experimentar um trabalho sujo, indigno, um trabalho que ninguém na aldeia se rebaixava a aceitar.

Nesses quinze dias, por volta do meio-dia, o João subiu sempre a rua muito devagar, parando a conversar com as velhas da aldeia. No último dia de trabalho, porém, ao contrário do que era habitual, subiu a rua numa passada acelerada. Vinha com pressa, com muita pressa, não parou para falar à vizinha Antónia nem apanhou uma flor para me trazer. Abrasava e, da varanda, enquanto o esperava, conseguia ver as ondas de calor. Pensei que viesse com vontade de ir à casa de banho, mas, quando chegou perto de mim, não trazia o ar aflito com que fica sempre que precisa de aliviar as tripas. Trazia, bem pelo contrário, um grande sorriso nos lábios. “Mãe, tenho uma coisa para te contar!” explicou e, sujo, o fato-macaco duro das lamas da pecuária, começou a falar aos atropelos. Antes que pudesse continuar, dei-lhe um grito, mandei-o tirar a roupa e tomar um banho. Já à mesa, enquanto lhe servia o almoço, contou por fim a sua história. Pela manhã, um dos búlgaros, o Yuri,  dera com uma cria doente. Magoara-se na grade da box e tinha uma pata partida. A Mena viera com a engenheira Sónia ver o bicho. Chegaram à conclusão de que não havia nada a fazer. Era preciso matar a cria e deitá-la ao lixo. O Yuri pegara imediatamente numa pá para realizar a tarefa. Foi então que ele, o meu filho, lhe arrancara a pá das mãos e reclamara para si a tarefa. “Quis ser eu a matá-lo, mãe! Bati-lhe com força quatro vezes e morreu num instantinho!”, contou sentindo um estranho orgulho que me assustou, me meteu até nojo. No final, o búlgaro deu-lhe uma palmadinha nas costas e disse “ Ah, João, foste valente!”. 

Nesse verão, entre primos e tios, avós, amigos, a façanha do João foi muito comentada por ser um exemplo de coragem e viril bravura adequadas ao seu género. Passaram quatro anos. O meu filho nunca mais voltou a falar da sua glória de infância. Espero que a tenha esquecido. Já eu não a esqueço. Às vezes, quando menos espero, surgem à minha frente as imagens que construí a partir do relato que me fez naquela tarde. De tão vivo e entusiasta, consigo pairar, como um pequeno pássaro, nas traves dos barracões das malhadas. Vejo tudo. O meu filho, ainda criança, matando à pazada um pequeno leitão. O seu rosto, redondo e bonito, torcido de fúria. A pequena cria caída na berma escura do esgoto. O búlgaro Yuri acicatando o João como se fosse um cão de fila. A Mena e a engenheira Sónia, sorridentes, batendo palmas.