2015/03/17

Bolor

“Estava cego, completamente cego, sentado a um canto, abandonado. A doutora chegava, pegava na minha mão e levava-me a passear”. Quis saber pormenores. Como cegara? Aparecia mais alguém no sonho? Para onde o levava? De que falávamos nós? Não foi capaz de explicar. “Lembro-me apenas de que, enquanto caminhávamos, sentia o cheiro do seu cabelo. Cheirava muito bem.” Dei-lhe um beijo e agradeci-lhe o sonho tão bonito. À hora do almoço, lembrando o sonho do Sr. Tobias, chegaram-me imagens do sonho desta noite. Uma livraria. Duas salas amplas, frescas como uma gruta, cheias de luz. Ando por ali, folheio alguns livros. Não sou capaz de levantar os olhos das páginas de um livro, não por estar concentrada na leitura, mas por me sentir incapaz de enfrentar o olhar dos outros. Sinto-me tensa, desconfortável, desajustada, uma intrusa, tenho vergonha do que sou. Comparando o sonho do Sr. Tobias com o meu, pensei nas conversas com o psiquiatra. Já por várias vezes falámos sobre a imagem que os outros têm de mim e a imagem que eu própria traço da minha pessoa. Qual é a imagem autêntica? A verdadeira? Não sei, só sei que, quase sempre, me sinto um embuste, uma peça de fancaria, um anelzinho de pechisbeque, daqueles que, pelo uso, rapidamente perdem o dourado e ganham a cor verdoenga do bolor.