2014/05/29

Peppermint extra-forte

- Ah, aquilo é muito bonito...
Abriu a mala e procurou uma pastilha que a livrasse do sabor da meia-desfeita de bacalhau comida num restaurante ali perto; o prato fumegando, cabeças de alho esmagadas, cebola picada, salsa espalhada por cima. Ulla comeu e bebeu, deixou prato limpo, copo vazio, uma delícia!, disse no fim e deu um arroto de satisfação. O hálito reimoso da cebola e do alho, porém, não o aguentou. Era tradição a mais. Encontrou a embalagem de pastilhas e pôs-se a mastigar vagarosamente. Sabor peppermint extra-forte. Depois, como se não a tivesse escutado, repetiu:
- Aquilo é muito bonito. 
Não era. Era bizarro, estranho, demasiado óbvio. O apreço dela por estatuária tão grotesca, desgostou-me, senti-me até ofendida. Aborreci-me, detestei-a, mas por muito pouco tempo. Ulla era bonita e tão educada. Não lhe respondi, amuada, mas a sua insistência fez-me olhar em redor. Andava o bairro muito diferente: caliça e alumínios por todo o lado, paredes pinchadas de palavrões, calçadas cheias de lixo, hordas de noctívagos passeando por ali, intelectuais, jornalistas, artistas, poetas de calças apertadas. O bairro já não conservava a mornidão das casas habitadas, era um lugar diferente, moderno, indistinto. Mas, no largo principal, como se fosse uma obra de arte, posto num altar profano, continuava aquilo, apontando, teso, muito hirto, para a janela onde viveu a professora de violino da Mafaldinha. 

2014/05/27

Renúncia

Fiz a aprendizagem da minha condição e, com passividade absoluta, acatei leis antigas. Aprendi o meu papel no casamento e na cama. Fui uma deusa morta, não uma mulher viva. Distribuí sorrisos, fiz sopas, massas guisadas, bolos de erva-doce, lavei copos e pratos, estendi cuecas, meias, lençóis; à noite, abri as pernas, arfei de cansaço e aborrecimento, recebi o esperma conjugal, virei-me para o lado e adormeci. Mas a máscara ainda não estava enterrada na carne do meu rosto. Numa noite de Verão, raspei os nós dos dedos na parede até os ver sangrar, mordi os braços, cuspi no espelho, arranquei a roupa do corpo e, assim nua, fugi. Uma desconhecida encontrou-me no largo da aldeia, encolhida junto de um canteiro de goivos. Levou-me para casa, lavou-me as feridas. Depois, sem nada perguntar, explicou-me o óbvio: não há maior tragédia na vida de uma mulher do que a renúncia; antes o desespero e a loucura.

2014/05/26

Segundo Sexo

Mal entrou no carro reparou no livro pousado no assento. Passou a mão pela barba e falou:
- Sabes uma coisa, Ana Clara?
- O quê?
- A Simone de Beauvoir só escreveu este livro porque o Sartre nunca foi capaz de lhe dar o que ela precisava…
Sem esperar resposta, colocou o cinto e começou a explicar o melhor caminho para chegar à Rua Capitão Renato Baptista. As minhas entranhas agitaram-se, o calor da noite deu-me uma súbita sufocação ao corpo; tive a sensação de que só me libertaria da náusea se abrisse a boca e, calmamente, lhe dissesse “Vai para o caralho” ou “Vai para a grande e malcheirosa puta que te pariu” ou simplesmente “Vai levar no cu”. Não disse nada. Conhecia-o há pouco tempo e a sua personalidade neurótica, também a sua erudição, ainda me deslumbravam. Engoli em seco, meti a primeira e, a explodir por dentro, arranquei em direcção à Rua Capitão Renato Baptista. Isto passou-se há mais de dois anos. Há muito tempo que não via o meu amigo, mas, ontem, encontrei-o à saída do cinema com uma mulher jovem, bonita, com um minúsculo pingente brilhante no nariz. Recordei o comentário que largou naquela noite. Recordei o meu silêncio. Quis puxar-lhe pela aba do casaco, retomar o assunto, dizer-lhe exactamente o que penso dele. Sem filtros, sem diplomacia, usando o insulto e, sobretudo, a mesquinhez. Voltei a calar-me. Agora, sinto-me fraca, miserável. Custa-me ser cobarde. Tenho vergonha de o ser.

2014/05/22

Estação morta

Roubei um livro da Maria Ondina Braga. Morreu em silêncio e solidão. Roubar, transgredir, prevaricar, experimentar o excesso e o delírio. Reli o melhor conto do Mishima. Comprei uma bromélia muito linda no Lidl. Antecipei o fim da flor num dia de chuva. Comi salada de rebentos de rabanete rosa. Tomei o triticum, a fluoxetina, o seroquel e, ao deitar, um libertador dulcolax. 

2014/05/07

Canto

Tenho um dente podre. Causa-me dor e mau hálito. Ando a ler “Anatomia da Melancolia”, do Robert Burton. Aprendi que a carne de veado é melancólica e tem mau sangue. Melancolia, desídia, bílis negra. Comprei um livro do Miguel Martins. Gostei do primeiro poema, mas o final desiludiu-me bastante.  A Rosalina trouxe-me um ramo de rosas do quintal. Ficou de me arranjar dois ou três bolbos de jarros. Liguei à Raquel. Estava em Moscavide a comer caracóis. Estive de conversa com o mais velho. Cortei-lhes as unhas dos pés enquanto falámos de sexo. Fez-me uma pergunta. Expliquei-lhe: o meu canto não atraí, não enlouquece nem desnorteia.

2014/05/06

Gladíolos silvestres

Caminhamos lentamente. Os miúdos correm mais adiante. No cruzamento da antiga farmácia, a minha tia estuga o passo e fixa o caminho do cemitério. Deixa-se estar assim por alguns instantes, parada, em silêncio, a olhar o horizonte. Depois fala: “Quando eu era pequena havia aqui duas figueiras muito altas. Lembro-me de vir aqui com a tua mãe apanhar figos.” Sorrio e, ao beijá-la, sinto o cheiro gorduroso da sua pele. Ao chegar ao cemitério, ergo-me na ponta dos pés para alcançar a chave do portão. Por cautela, o coveiro da aldeia deixa-a sempre no esconderijo que escavou no tronco de um pinheiro. Enquanto a tia Dé se encarrega da limpeza da campa – já lá vem com um balde de água e uma vassoura de cerdas rijas -, passeio entre os mortos. Cheiro as sebes de buxo, leio os epitáfios, faço questão de ir ver as campas dos três anjinhos que morreram com leucemia, murmuro os nomes das mortas que conheci, Umbelina, Eleutéria, Adosinda, Preciosa. A Adosinda atirou-se a um poço. A Preciosa enforcou-se no limoeiro do quintal. A minha tia vai esfregando a campa com a vassoura de cerdas rijas. Por mais que esfregue, as manchas pretas não saem, apenas o verdete mais superficial desaparece. “Da próxima vez”, diz, erguendo a voz para que a escute, “é preciso trazer ácido muriático para limpar estas manchas”. Levanto os olhos da campa da Preciosa. A conversa perturba-me. A passagem foi demasiado abrupta. Há pouco, a minha tia falava das figueiras da sua infância, convocou um tempo distante e feliz, uma alegria branda chegou-me nesse instante, o sol acariciou-me as mãos, o céu ficou mais azul, as iresines dos canteiros esticaram-se mais do que é costume, mostrando-se, senti vontade de chorar. Agora, a minha tia levantava a voz e pronuncia a palavra “ácido muriático”. Sempre que oiço falar em acido muriático, lembro os quatro da vida airada queimando as pedras do pátio, mas também uma reportagem que vi há alguns anos. Um rapaz amava muito a sua namorada e por amor, quando esta o quis deixar, amarrou-a ao tronco de uma árvore e lançou-lhe ácido no rosto. Borbulhou o rosto da rapariga e, para sempre, ficou marcado pela triste loucura do amor. O amor é um grande risco, penso e, não sei porquê, aflora-me ao espírito o primeiro romance da Maria Teresa Horta. Foi recentemente reeditado e chama-se “Ambas as mãos sobre o corpo”. É um título tão mau que até arrepia. Volto-me para o portão. "E os miúdos? Por onde andarão?", pergunto à minha tia. Não me responde. Está completamente concentrada no que está a fazer. Retira a gravilha da jarra de alabastro. Sente a rugosidade das pedras nas pontas dos dedos que, estranhamente, se tingem de um vermelho açafrão. Enfia as três hastes de flores artificiais compradas na loja chinesa que fica perto do mercado de Santiago. Um euro e oitenta, cada. Imitações grosseiras de rosas e coroas imperiais. Volta a colocar a gravilha, calca-a com as mãos para que as flores fiquem bem presas. É inconsequente a sua preocupação. As flores resistirão ao vento, mas daqui a dias a cor estará comida do sol e o ar de ruína e abandono voltará. Os meus filhos chegam por fim. Vêm ofegantes e, nas mãos, o Joaquim traz um raminho mal-amanhado de papoilas, malmequeres do campo e calças de cuco, raríssimos gladíolos silvestres que costumam crescer nas pastagens altas da ribeira. 

2014/05/04

Almanaque

A semana passada, no alfarrabista da Elias Garcia, encontrei vários exemplares da revista Almanaque. Actualmente, com excepção de algumas pequenas editoras, da Antígona e da Relógio D`Água, no geral, fazem-se livros feios, vulgares, de dimensões pantagruélicas. Até os livros da Tinta da China, que tanta gente aprecia, me parecem todos iguais, repetitivos, grafia aborrecida e previsível. Um leitor se quer lavar as vistas tem mesmo que se virar para a edição antiga. Aí encontrará livros luminosos  e sóbrios, com capas do Paulo Guilherme, do António Garcia, do Sebastião Rodrigues ou do João Câmara Leme.  A revista Almanaque, para além da coordenação do José Cardoso Pires, teve como responsável gráfico o Sebastião Rodrigues. São revistas únicas. Mal as vi, perfiladas na segunda estante do novo alfarrabista, desejei que fossem minhas. Porém, quando perguntei à mocinha pelo preço, para minha surpresa, ela largou o que estava a fazer e foi inesperadamente teatral na resposta que deu. Saiu detrás do balcão, ensaiou um passo de dança e, de um salto, montou-se no alazão de crina dourada que está no meio da loja. Lá de cima, devidamente escarrapachada no lombo do bicho, explicou-me, com um esganiço de voz, que só vendiam as revistas por atacado. Duzentos e cinquenta euros pelo conjunto dos dezoito exemplares publicados. Engoli em seco. Suspirei. Saí. Tive pena de não ser rica como o meu vizinho Duarte que é militante socialista e tem um lindo Porshe Carrera. Desde então não penso noutra coisa. Imagino-me sentada na cama, com dois pacotes de Filipinos, as revistas espalhadas na colcha de floreados que comprei no Ikea. Deleito-me com a possibilidade de bisbilhotar à vontade cada exemplar, atentar aos detalhes gráficos, ler os contos, divertir-me com os artigos de floricultura e com as críticas gastronómicas. Depois de muito pensar no assunto, percebo que só me resta uma solução: pôr-me à venda. Toda a gente tem um preço e eu tenho o meu. Pelas revistas, janto, converso, gargalho, molho os lábios num branco muito fresquinho. Respostas, sff, ao mail anexo a este berloque.