2012/11/01

Maria Adelaide


O médico explicou-lhe. Tratava-se de um carcinoma hepatocelular, as metástases encontravam-se já espalhadas pelo corpo. Faria tudo o que estava ao seu alcance para lhe aliviar as dores. Iniciaria de imediato os tratamentos quimioterápicos para a destruição das células tumorais. Avisou-a dos efeitos colaterais: náuseas, vómitos, diarreias, anemia, alopecia. Marcou nova consulta para daí a quinze dias. Despediu-se do médico com um aperto de mão e um sorriso. Queria sentir tristeza e não conseguia. Sabia que devia chorar. Meteu a guia de tratamento dentro da mala e saiu do consultório. Fez o caminho mais longo para casa. Andou durante bastante tempo tentando perceber o que sentia. Sem rodeios ou dramatismos: tinha um cancro e morreria em breve. Entrou no prédio onde morava passava das oito horas. Chamou o elevador que chegou aos guinchos. Entrou na cabine e olhou-se ao espelho. Só quando viu o seu ar macilento, a cicatriz no lábio superior, o cabelo num desalinho, os olhos encovados, o aborrecimento de uma vida plasmado no rosto feio, percebeu o que sentia. Era frustração e vergonha. Nada mais. A sensação de que Deus a gozava. Novamente. Nascera para ser gozada. Carregou no botão do oitavo andar. Nessa breve viagem, pareceu-lhe que o tempo se alongava. Dentro do tempo havia mais tempo. Dentro das horas mais minutos. Dentro dos minutos mais segundos. A vida passou-lhe diante dos olhos. Como se fosse um filme.

Chamava-se Maria Adelaide. Fora sempre uma criança enfezada. Nascera com uma fenda leporina no maxilar superior. A mãe, uma doméstica muito crente, casada com um construtor civil de Fátima, chorou-lhe o nascimento como se do ventre lhe tivesse escorrido o ser mais infame à face da Terra. Aos dois anos foi operada para fechar a fissura que causava tanto embaraço nos passeios domingueiros. Ficou-lhe uma cicatriz grossa e vermelha, aos gomos, que parecia ter sido suturada por uma costureira inexperiente, com fio de estopa, a sangue frio, sem cuidado ou gentileza. Feiinha, de uma feiura quase comovente por causa da cicatriz que lhe ficara no rosto, sentia-se sempre posta de lado nas festas familiares. A mãe bem podia enfeitá-la de laçarotes e vesti-la de folhos que as primas Arlete e Gorete, as gémeas que viviam na Bobadela, robustas e sadias, sempre lhe mostravam que a beleza era requisito imprescindível para uma mulher ser feliz. Faziam questão de lhe mexer na cicatriz porque, como explicavam, parecia um bichinho de seda morto. Chegavam tios e tias, primos e primas para a celebração dos domingos pascais e para a ceia de natal. A vivenda que o pai mandara construir em Sacavém, mesmo à beira da estrada nacional, revestida de azulejos cor de caramelo, rebentava nesses dias de festa. Os homens sentavam-se nas poltronas de cabedal do salão a mastigar rodelas de chouriço assado e quadrados de queijo flamengo. As mulheres enfiavam-se na cozinha a admirar os novos conjuntos de taparuéres que a mãe adquiria compulsivamente. As crianças corriam para o quarto de Maria Adelaide onde havia uma estante só para as bonecas compradas em Badajoz. Em cima da colcha de renda branca, de pernas abertas, muito esticadas, uma sevilhana vestida de folhos vermelhos, travessa e mantilha, olhava-se, altiva, no espelho oval do pechiché. Maria Adelaide seguia o bando e metia a sevilhana a salvo, em cima do roupeiro, não fosse algum dos primos parti-la e a mãe apanhar um desgosto profundo. Um dia descobriram que Laidinha, era assim que a família a tratava, gostava do primo Renato, rapaz de uma beleza óbvia e ordinária. As primas fizeram uma algazarra. Correram a contar-lhe. O primo olhou-a de cima a baixo e deu uma gargalhada escarninha que ficou, para sempre, presa nas paredes do quarto. Foi a primeira vez que Maria Adelaide sentiu que Deus a gozava. Não voltou a brincar com os primos nas festas de família. Ficava sentada no salão, entre os homens, mordiscando azeitonas.

A adolescência passou sem atropelos, entre a escola secundária de Sacavém e o grupo de jovens da paróquia. Continuava feia, apagada, triste. Não teve borbulhas e o período menstrual apareceu-lhe aos doze anos, num dia de muito calor enquanto dormitava em cima da colcha de renda ao lado da sevilhana dos folhos vermelhos. Quando acordou, reparou que um sangue vivo manchara a colcha branca e a mantilha da boneca. A mãe ralhou-lhe por não puxar a coberta para trás e mandou-a tomar banho. Depois correu para o tanque a esfregar com sabão de seda a vestimenta da espanhola. Por essa altura nasceu-lhe também um buço de pêlos escuros que acentuava a cicatriz por cima do lábio. A mãe correu a pedir ao construtor civil cinquenta contos para várias sessões de depilação eléctrica que salvassem a filha da vergonha do hirsutismo. Foram as duas a uma esteticista de Camarate, que também era conhecida por ser muito boa calista. Feita a primeira sessão, arrancados os primeiros pêlos, a cicatriz inchou, como se fosse um animal furioso. No dia seguinte, Adelaide acordou dorida, cheia de crostas. Explicou à mãe que não voltava a Camarate. Sentia que a cicatriz rebentava e um abismo de novo se abria no rosto. Achou que Deus a gozava pela segunda vez. A esteticista veio à vivenda dos azulejos cor de caramelo. Aplicou-lhe emplastros de vinagre na cicatriz e passou a oxigenar-lhe o buço de quinze em quinze dias. Também recomendou um calicida oriental muito bom para os joanetes da mãe que a aliviava muitíssimo das dores que sentia nos pés ao final do dia.

Não quis estudar apesar da insistência dos pais. As gémeas Arlete e Gorete entraram em Direito e tornaram-se mulheres emancipadas, de cigarro ao canto da boca e cabelos ripados, pintados de cores estranhas. Acaju. Ameixa. Adelaide tirou um curso profissional de contabilidade e casou aos vinte e cinco anos com um amigo do grupo de jovens. O namorado era mais velho e tinha uma fé que a todos espantava. Fazia retiros constantemente. Rezava com muito fervor. Namoraram pouco tempo. Eduardo José, assim se chamava o namorado, quis casar mal se empregou na Repartição de Finanças de Sacavém. As primas vieram ao casamento, cheias de écharpes esvoaçantes, pochetes refulgentes, sapatos forrados de cetim. O primo Renato também veio. Casara-se com uma enfermeira parturiente da margem sul. Pouco depois do casamento, Adelaide descobriu por que razão o marido lhe suportava a feiura da cicatriz e o resto: a flacidez precoce do corpo, a mãe tão espampanante e impositiva, as conversas aborrecidas do pai sobre como era difícil encontrar pessoal que dominasse a técnica do assentamento da cerâmica e do azulejo. O marido fugia-lhe do quarto e continuava a passar os fins-de-semana em retiros espirituais. Percebeu que se forçara ao casamento para disfarçar certas tendências quando o encontrou, numa madrugada de Dezembro, na casa de banho masturbando-se com várias revistas espalhadas pelo chão. Eram homens com homens nas páginas das revistas e o marido, com as calças do pijama de flanela para baixo, olhando-os como se estivesse possuído por mil demónios. Maria Adelaide definhou a olhos vistos. Deus gozava-a pela terceira vez.

Aconselhou-se com a mãe. Não tinha mais ninguém a quem recorrer. A mãe escutou-a na vivenda de azulejos cor de caramelo. Explicou-lhe com inesperada clareza a natureza instrumental do casamento: era apenas um meio para se alcançar um fim. Maria Adelaide encontrou certo conforto no conselho. Chegou-se ao marido e disse-lhe que podia suportar o resto desde que tivessem um filho. Foi mãe aos vinte e nove anos. A menina que nasceu era muito bonita. Maria Adelaide rejubilou. Achou que a beleza da filha vingava o seu passado de permanente gozo: o lábio leporino à nascença, a mãe assim como era, a gargalhada do primo Renato no quarto das bonecas, o despeito das primas, o marido olhando imagens de homens nus. As primas, Arlete e Gorete, estranhavam a extraordinária beleza da menina. Não percebiam como podia a Laidinha ter tido uma menina tão linda. Mais parecia filha da Broke Sheilds. Descobriu-se, pouco depois, que a menina sofria de atrasos graves. Mal falava e babava-se muito. As primas voltaram a visitá-la e a consolá-la. Conseguiam suportar a beleza da filha agora que a sabiam tolinha. Deus voltava a gozá-la. Pela quarta vez.

Desde essa altura, passou a pensar frequentemente na sua morte. Era uma suicida crónica, mas era uma suicida feliz. A ideia da morte aliviava-a sempre. Às vezes, durante a noite, quando estava triste, pensava no seu funeral e sentia-se logo melhor. Imaginava então o caixão descendo à terra, a laje branca, o primo Renato chegando com a enfermeira da margem sul. Via-se deitada, as mãos postas em cruz, uma renda cobrindo-lhe o rosto, tornando-o desfocado, disfarçando-lhe a cicatriz do lábio. Quase que ficava bonita assim, morta, vista através das rendas. As primas e as tias haviam de chegar-se perto e chorá-la com sinceridade. Sentia que a morte era um remédio para todos os seus males, mas também uma maneira de mostrar aos outros a sua força. Há tantos anos que pensava na morte que se acostumara a ela. A morte era a sua derradeira oportunidade de ser feliz. Que Deus lhe servisse agora, assim de repente, a morte, de bandeja, era coisa que não tolerava. Não queria que Deus lhe oferecesse um carcinoma hepatocelular, lhe tirasse o mérito da decisão, a espectacularidade do gesto trágico. Não aguentava que Deus a gozasse assim, tão descaradamente, como quando era pequena e soltara uma gargalhada no seu quarto. Por isso sentia vergonha e frustração.

Estremeceu quando o elevador chegou ao oitavo andar. Foi como se despertasse. Tomara uma decisão. Nessa noite, limpou a loiça do jantar, adormeceu a filha, telefonou à mãe que enviuvará há pouco e vivia ainda na vivenda revestida de azulejos cor de caramelo. Escutou o ronco do marido, aconchegou-lhe a roupa. Teve pena dele. Abriu a janela da sala, subiu para o parapeito e deixou-se cair. Nessa breve viagem, desde o momento em que os pés se soltaram da janela e o seu corpo tocou no chão da rua, Maria Adelaide voltou a sentir que o tempo se alongava. Dentro do tempo havia mais tempo. Dentro das horas mais minutos. Dentro dos minutos mais segundos. Uma eternidade.