2012/06/20

Nós

Faz hoje um ano que tomei uma caixa de Xanax, disse a mulher ao empregado do bar. Depois calou-se, estranhando as palavras que se tinham soltado da sua boca. Nunca ninguém lhe falava desse dia. Nem o marido. Nem os irmãos. Nem os pais. Nem a única amiga que tinha. Era como se não existisse. Como se outra, que não ela, tivesse naquele dia rondado o bairro de Chelas à procura de espantar a dor para os homens que, sonolentos, despertavam para a manhã. Como se outra, que não ela, tivesse escutado os renhaus dengosos que as mulheres lhes lançavam das janelas dos prédios de habitação social. No fundo, aquele dia só existia para ela, para mais ninguém. Por isso o celebrava sem que os outros soubessem, bebendo ao final do dia, num bar da rua de São Paulo. O empregado do bar voltou e pousou no balcão um copo triangular, com gelo moído e hortelã fresca. Sorriu-lhe de forma profissional, asséptica, como a querer dizer-lhe olhe que eu também tenho os meus problemas, não estou com disposição para confissões. Mas a mulher não o percebeu. Ou fingiu não o perceber. É triste uma pessoa falhar até na morte, não acha? E, sem esperar pela resposta, começou a chupar o sal dos bordos do copo.

(Faz hoje precisamente seis anos que tentei matar-me e, hoje, o médico da medicina do trabalho disse que eu era uma mulher bonita, tem três filhos, dizia, uma profissão, mas tantos nós por desatar. Aconselhou-me psicanálise. Não quero desatar os meus nós, gosto deles assim, cegos, brutos, alimentam-me. Tive vontade de o mandar para o caralho.)