2012/06/10

El enanito (7)




Depois de dias de hesitação, vou, não vou, vou, não vou, voltei à Almirante Reis. Pouca, nenhuma, a vontade de encontrar o meu amigo e a sua Moranguita. Custa-me a felicidade dos outros. Lisboa não é a minha cidade, nunca será, mas a Almirante Reis é a minha rua. Metamorfoseio-me se estou quinze dias sem lá ir. Começa a pele a secar, ganho impingens pruriginosas, coço-as até sangrar, os pêlos do buço crescem mais depressa, muito pretos e arrepiados, incham-me os olhos, até a voz se altera, perde robustez, fica um esganiço que se enrola nas palavras. Na quarta-feira, acordei com duas manchas alaranjadas no braço direito, resolvi meter um dia de férias. Larguei os miúdos na escola, o mais pequenino disse-me um segredo ao ouvido, e rumei à Almirante Reis. Fui descendo a avenida devagar. Mal cheguei à esquina com a Antero de Quental, encontrei o meu amigo, vestia uma bata ensanguentada, vinha de fazer uma entrega na Marisqueira do Lis, mas tinha tempo para uma bebida. Sentámo-nos na esplanada do chinês vesgo, cá fora, a gozar o fresco do mês de Outubro, eu a matar saudades da indigência, ele, perninhas bambas, baloiçando, sem chegar ao chão, a contar-me as novidades. Arranjei trabalho no talho do Karim. Ele tinha, como ajudante, um costa marfinense, uma besta grande, fazia para aí dez de mim, quatro dentes de ouro, evaporou-se de um dia para o outro, levou três frangos do campo, uma palete de codornizes e uma carcaça de vaca ainda por desmanchar. Deixou o Karim numa aflição. Ofereci-me para o ajudar. Ele aceitou e mandou fazer um estrado para eu chegar ao balcão; anda tão satisfeito com o meu trabalho que até já encomendou a um artífice lá da terra dele, cuteleiro do melhor que há, um estojo de facas para o retalhe de animais de pequeno porte: patos, coelhos, frangos, galinhas.

A Moranguita, continuou, é que ainda não encontrou trabalho. Vai fazendo uns biscates. Entretém-se a fazer croché, é muito habilidosa, umas mãos de oiro, faz pegas, bolsinhas para os telemóveis, vende-as na entrada do metro.  Anda a bordar uma toalha, toda a ponto richelieu, encomenda de uma finória qualquer, encavalita-se em cima de um bastidor especial que comprámos na Rua da Conceição, passa a noite naquilo. Também ajuda a limpar o altar da Igreja dos Anjos uma vez por semana. Para além de contorcionista, é exímia trepadora, mete-se em buraquinhos, nichos de santas, amarinha por ali acima, parece um sagui, leva uma flanela embebida em óleo de linhaça, deixa tudo num brinquinho.  O padre, um velho jesuíta, diz que nunca teve a igreja tão limpa, os rostos dos santos andam luzidios e os ornatos da talha dourada parecem feitos de sol e luz. Parou um pouco. Limpou a saliva que se acumulara na comissura dos lábios e cumprimentou uma matulona que ia a passar. Sabes, nos dias em que faz a limpeza aos santinhos, à noite, quando se deita, ainda leva aquele cheiro perfumado, cheiro de mirra, incenso, um cheiro muito oriental. Enfio o nariz nos pentelhinhos, andam tão macios, e perece que estou numa medina magrebina, cestos cheios de tâmaras, latoeiros, homens de cócoras fumando, como lagartas azuis, narguilés. Cheirá-la nesses dias basta-me. Depois, abruptamente, deu um salto, fez uma momice que me pareceu escusada, e despediu-se, desculpa, mas tenho de voltar ao trabalho que o Karim prometeu que, se houvesse pouco clientela, me ensinava a desossar uma galinha.

Dei-lhe um abraço, bebi mais um sumol e pedi a conta. Voltei a subir a Almirante Reis. Olhando a montra de uma sapataria, encontrei-me do outro lado, achei-me feia como um xarroco, primitiva como um rascasso, plana como uma tremelga. Estava eu na habitual comiseração, quando alguém me chamou. Olhei e vi um velho abonecado, lenço de seda, casaco assertoado, apoiado num andarilho de quatro pés. Reconheci-o imediatamente. Era o velho do açafate de fruta, o quase defunto da empregada brasileira, o miserável que me escorraçara sem dó nem piedade do seu apartamento sombrio da Passos Manuel, furioso com a minha iliteracia, como se pode viver, gritou-me naquela tarde, sem conhecer o decandentismo e o vitalismo moderno? Tivera uma franca melhoria, a brasileira dera-lhe a experimentar um chá de flor de fava, estava muito melhor, já não usava algália, largara de vez a literatura, tomava apenas o vigamed e o tryptanol para o coração. Estou como novo, rematou, vou ali abaixo à procura de carninha, alcatra, chambão do bom, tenho comido do melhor. Escutei-o em silêncio. Depois - não sei explicar porque o fiz - perguntei-lhe se lhe apetecia a minha companhia. Disse que sim. Pegou no andarilho de alumínio, largou um pingo de baba e pôs-se a andar a meu lado muito devagar.