2012/02/16

Petromax

A avó morreu e a minha mãe começou a trabalhar em casa. É um trabalho duro. Chegam uns homens que se fecham com ela no quarto. Na primeira noite, tive medo que eles ma levassem. Ela sossegou-me. Explicou que tinha de ficar deitada na cama e adormecer. Quando amanhecesse voltaríamos a ser só nós duas. Mas eu ouvi risos no quarto da minha mãe e pareceu-me que a raiva lhe morria na garganta. Na segunda noite, não sei que me deu, entrei no quarto e vi-a deitada na cama com um homem. Despi-me e deitei-me entre eles. Agarrei-me ao corpo nu da minha mãe e chorei um rio de muitas lágrimas silenciosas.Tira-me esta gaja daqui!, gritou o homem à minha mãe. Na terceira noite, ela acendeu um petromax e levou-me para o barracão onde a avó costumava guardar as batatas e as cebolas. Pediu-me para ali ficar. Mal ela rodou a chave da porta dei um pontapé no candeeiro que se apagou. Na escuridão, arranquei todas as palavras que costumam estar presas dentro de mim. Fugiram-me da boca. Eram morcegos loucos. Voavam em espirais, batiam no tecto, chiavam, faziam ricochete e enterravam-se no meu corpo como facas afiadas, pedras, como balas.

Na quarta noite, veio outro homem. Era careca e não tinha pestanas. Usava uma cruz ao peito. Foi nessa noite, na noite do homem sem pestanas, que a minha mãe me levou, pela primeira vez, para a capoeira. Tinha nascido uma ninhada à galinha pedrês e entretive-me a brincar com os pintos. Não gritei e a minha mãe pôde trabalhar em sossego. A partir daí, sempre que ela tem trabalho ou precisa de ir a algum lado, fico na capoeira. Passo lá muito tempo. Pela rede entram lagartas das couves, caracóis, grilos e escaravelhos. Sentada na serapilheira, com a Branquinha ao meu colo, consigo observar tudo. Vejo as sombras do dia e da noite. Conheço as árvores do quintal e os gatos que por cá aparecem. São cinco: dois malhados, um branco, um amarelo e um preto. Passo muito tempo a olhar as nuvens e as estrelas. Os pássaros voam em bandos ruidosos e desenham figuras no céu. Gosto de ver as nascer as folhas do castanheiro-da-índia. Não há cor mais bonita do que o verde das primeiras folhas. É o verde das coisas que são novas, tenras, das coisas que não eram e passam a ser. Consigo distinguir o cheiro da flor de laranjeira do da flor do limoeiro. No quintal, sentada na capoeira, vejo o que mais ninguém vê: os gritos que se soltam do poço e a avó que desce a ladeira com a sachola ao ombro. Na capoeira não há quem me estranhe e ninguém me limpa o rosto com toalhetes perfumados.