2011/11/04

Dr. Lucas

A minha tia trabalhou muitos anos no bloco operatório do Hospital de São José. À noite, quando se deitava - eu e a minha irmã Susana, muito quentinhas, encostadas ao seu corpo - falava sempre do dia de trabalho. Hoje chegou ao bloco um homem desfeito, politraumatizado, não levava cinto de segurança, o carro onde seguia foi para a sucata; a mulher que estava na cama 5 morreu depois do almoço, deixou marido e uma menina pequenina, coitadinha; um rapaz chegou do hospital de Beja, foi atropelado por um tractor, a noiva passa os dias a chorar na sala de espera, não come, não dorme, só chora. Havia nas histórias da minha tia um realismo tal, tão intenso e absurdo, que as tornava distantes, não nos tocava. Nesse recontar dos seus dias, deitada connosco, uma de cada lado, falava das colegas, a Gamito, a Domingas, a Conceição Anselmo, simpáticas, solteiras também, comunistas também, ofereciam-nos livros de fábulas, bonecas de trapo, tabletes de chocolate Regina. A minha tia falava também muito de um médico. Os seus olhos sorriam quando falava desse homem. Dr. Lucas, dizia ela e, instantaneamente, o rosto iluminava-se, uma felicidade absoluta fazia com que os músculos das extremidades da boca flectissem, sorria. O Dr. Lucas só me quer a mim no bloco operatório, repetia a minha tia; essa preferência trazia-lhe uma alegria breve que não conseguia disfarçar. Deitadas na cama, à espera que nos lesse mais um capítulo das Minas do Rei Salomão, percebíamos que não era por causa do brio profissional que a tia Dé ficava feliz por assistir o tal médico no bloco operatório. A minha tia amava o Dr. Lucas. Muitas vezes, tentei imaginar esse homem. Nunca consegui escolher para ele um rosto. Havia aquele nome, Lucas, que exigia certo exotismo de traços e havia o entusiasmo, a coragem de lidar com a morte, tudo aquilo requeria um rosto único, forte, marcante, o rosto de um herói grego. As minhas capacidades de inventar rostos para as pessoas, que, mais tarde, vim a apurar, eram naquela altura ainda muito limitadas. Cada vez que a minha tia falava do Dr. Lucas, eu colocava-lhe um rosto diferente, banal, incapaz de se recordar.

Uma manhã de sábado, luminosa, ao fugir da minha irmã, bati com o queixo na esquina do frigorífico. Abriu-se uma fenda grande e profunda, pingos muito vermelhos de bordos irregulares caíram no chão da cozinha forrado a linóleo. Os meus pais acudiram. Enfiaram-me no carro e levaram-me ao bloco operatório onde a minha tia estava de serviço. No banco de trás, o carro atravessando o Areeiro e a Almirante Reis, mão no queixo a empapar o sangue com uma compressa, as unhas roídas, ia consolada com a minha dor. Finamente teria oportunidade de conhecer o tal médico. Tenho esse dia muito presente. Levava um gancho azul da Heidi a prender-me o cabelo, um gancho metalizado, o que eu gostava do brilho desse gancho, tive um desgosto quando o perdi. Vestia uma saia de pregas e uma camisola de gola alta, em tons alaranjados, que me picava muito no pescoço. Tenho esta capacidade extraordinária de recordar minúcias, detalhes, fixar-me naquilo que é irrelevante. É uma capacidade que não tem préstimo nenhum, mas tanto que gosto de a ter. Nessa manhã, a gola da camisola a picar-me o pescoço, deitada numa maca que me sobrava, olhos postos nas luzes brilhantes do bloco operatório, pareciam óvnis, procurei por todo o lado o tal Dr. Lucas. Porém, porque não estava de serviço ou porque, estando, ninguém o chamou pelo nome, não o conheci. Na verdade, nunca cheguei a conhecer tal homem. Anos mais tarde, a minha tia deixou o bloco operatório de São José, foi para a maternidade Magalhães Coutinho e, com o tempo, deixou de falar desse homem que nunca ganhou um rosto.

(Lembro-me muito do Dr. Lucas. Talvez por ter agora a idade da minha tia quando o amou.)