2011/05/25

Sansão (1)

Sinto, de imediato, o cheiro enjoativo das tintas, dos champos, das ceras, dos vernizes, dos cremes-amaciadores, das máscaras capilares. Está quase vazio. Há apenas duas mulheres. Uma está sentada lá atrás e lava a cabeça. A outra está sentada em frente dos espelhos ovais. Uma rapariga de cabelo vermelho seca-lhe o cabelo. A mulher é velha. Usa um fato cor de cereja e uns sapatos rasos de pala. Pintou o cabelo de cinzento, com matizes azulados. Nunca percebi o que leva as mulheres velhas, quase mortas, a pintar o cabelo de azul, roxo, grená, cor-de-rosa. “Quero cortar o cabelo”, digo à rapariga que está na recepção. “Tem preferência por alguém?”, pergunta-me, enquanto fecha um livro de capa azulada que fala de anjos e demónios. Digo que não com um gesto. Indica-me uma cadeira. Dispo o casaco. Tiro os brincos. Retiro os inúmeros ganchos e elásticos que me prendem o cabelo. Enquanto me solto, olho-me. O meu cabelo está comprido, muito comprido, nunca o tive assim. É um cabelo forte e crespo. Tem uma ondulação indefinida que sempre detestei. Desde pequenina que o gabam. Por ser forte. Pela cor que tem. Piche, pez, breu, noite, alcatrão, escuridão, negrume.

Sempre foi assim. Em criança, quando rumava ao cabeleireiro com a minha mãe, as cabeleireiras elogiavam-no sempre. Chamavam-se umas às outras para ver a força do meu cabelo. Eu sentia-me uma espécie de Sansão aprisionado num corpo de menina. A dona do cabeleireiro, uma senhora redonda e feia, com muitos anéis nos dedos, cujo nome não recordo, era quase careca. Por baixo dos poucos cabelos, via-se a pele lustrosa do crânio. Sempre que me via, sentada na cadeira, a fugir com os olhos para o chão para evitar conversas de circunstância, pegava nas madeixas do meu cabelo e dizia “Que sorte, a tua. Quem me dera ter um décimo do teu cabelo!”. Eu fazia-lhe um sorriso, muito forçado, sabe Deus o que me custava aquele sorriso amarelecido e falso, e desviava de novo o olhar para outro canto qualquer do salão. Para os carrinhos cheios de rolos, molas, escovas e tesouras. Ou para os escaparates com frascos bojudos, outros esguios, de cores variadas e apetecíveis. A verdade, porém, é que aquela mulher, gorda, de crânio lustroso, me assustava. Quando ela me dizia aquilo, eu, pequena, sentada na cadeira, imaginava-a uma Dalila feiosa e furiosa, uma espécie de feiticeira, capaz de me lançar um feitiço para se apoderar do meu cabelo.