2009/11/19

Guile e Belinda


Alessandra Sanguinetti

Andaluza

Certa vez instrui a minha irmã mais nova sobre o meu funeral. Uma mulher deve ser previdente e cuidar de todos os seus assuntos, incluindo a morte. Se há coisa que me aflige é imaginar-me enterrada num cemitério com vista para a cril ou para a crel ou para a radial de Benfica. Junto a um retail park. Até me dá arrepios. Pedi-lhe que me enterrasse no cemitério da aldeia, perto dos nossos avós, onde, mesmo morta, possa sentir o cheiro das figueiras e escutar o ronco das motorizadas que, pela tarde, levam os velhos de volta para os montes. Que tratasse de me arranjar uma campa rasa, com uma lápide branca, sem fotografias ou epitáfios. Que me vestisse a saia antiga, rodada, de veludo cotelê, me apanhasse o cabelo numa trança e colocasse nas orelhas as arrecadas incas que nunca fui capaz de lhe oferecer. Se for tempo das dálias e dos cravos túnicos que peça licença à vizinha Teresa e à Preciosa dos queijos, a que é belfa e usa sempre um chapelinho de palha, para os apanhar dos canteiros e os coloque numa jarrinha branca. Fi-la prometer que me enterraria sem a presença de estranhos. Quero um funeral selecto. Com quem gosto. E preciso. Pai, mãe, tia, irmãos, filhos, sobrinhos, as primas da aldeia. Mais ninguém. Pedi-lhe, ainda, que cantasse o poema: Quando eu morrer batam em latas, rompam aos saltos e aos pinotes, façam estalar no ar chicotes, chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro ajaezado à Andaluza... A um morto nada se recusa. E eu quero por força ir de burro. Ai dela que não me faça as vontades! Pobre e querida maninha. Hei-de voltar, pior do que fui, um espectro medonho e terrível, para lhe fazer a vida negra.

(Gosto tanto da minha irmã. Buéréré.)

Lomba

Lia o público enquanto comia um pãozinho de sementes. Foi então que cruzei o olhar com o novo cronista. Apesar do desprezo que tenho pelos homens em geral, mesmo não querendo, volta e meia, caio na tentação de me entusiasmar com um ou outro. É degradante. Desconfio que, com algum empenho, era até capaz de me livrar da algidez que me dá conta da vida há tantos anos. Aborreci-me com a minha triste sina de feminista heterossexual frígida. Preferia, de longe, ser uma feminista lésbica frígida. As feministas deviam ser todas lésbicas. Sempre eram mais coerente. E ser coerente é tão importante nos dias que correm. Por isso é que há tanta gente que arremelga os olhos e diz admirar a coerência do Álvaro Cunhal. Adiante. O meu entusiasmo pelo novo cronista fez-me engasgar. Deve ter sido castigo. Uma semente de girassol caiu-me no goto. Deixei de respirar. Valeu-me o Sr. Domingos que, parecendo uma impala, uma gazela, saltou por cima do balcão das torradas e salvou-me. Deixou os papo-secos e as fatias de pão saloio a esturricar na placa. Bateu-me nas costas com força enquanto eu sufocava. A Conceição da contabilidade, muito fanhosa, indignou-se com o atraso da sua tosta mista aparada. Um luxo. A fanhosa de Agualva-Cacém trincando todas as manhãs uma tosta mista aparada feita pelo escravo guineense das torradas. Acabei por espirrar a semente pelo nariz que aterrou em cima da fotografia do novo cronista. Tão lindo que ele estava de barba. Sosseguei e assoei-me a um guardanapo de papel. O Sr. Domingos, ajeitando o avental da farda, olhando o jornal, quis saber se me tinha engasgado com a pouca vergonha que anda neste país. Disse-lhe que sim, que sim, pois claro, ando muito preocupada com a situação do país. Quando a Conceição passou por mim, com a sua tosta mista aparada, muito fumegante, olhou-me de soslaio, procurando vestígios de muco nasal do meu engasganço. Abri-lhes as minhas narinas gigantes. Parecem cavernas de homens pré-históricos. São assustadoras. Fez um esgar de repulsa. E soltou um ai amedrontado, a parva. Mal sabe ela que eu, feminista empenhada, e magnânima, defendo até as mulheres que desprezo profundamente. Como ela.

2009/11/17

Anna Karenine

Sempre tivera queda para o bovarismo. Permanentemente aborrecida com a realidade, identificava-se com as personagens dos livros que lia e dos filmes que via. Era uma coisa um bocadinho presunçosa, reconhecia. Isto acontecia-lhe desde sempre. Em miúda, sentia-se igual à Mariana que saíra da cabeça da Alice Vieira. A identificação era a tal ponto intensa que lhe imitava os gestos. Comprava cadernetas de cromos e jurava a si própria que quando tivesse uma filha lhe haveria de oferecer uma parede branca para desenhar camelos com garrafas. Vida fora, sempre se fora identificando com as protagonistas que com ela se cruzavam. A identificação mais intensa ocorrera, porém, há pouco tempo com Anna Karenine. Mulher. Apaixona-se por Vronsky. Deixa o marido e o filho. Aceita a condenação da sociedade pela sua opção. No fim, o conde Vronsky, cansado de tanto amor, aborrecido de tanto fatalismo, dá-lhe um valente pontapé no cu. Em detrimento da languidez morna das alcovas, escolhe o regimento. Um homem gosta de ser homem, pois claro. Guerrear. Lutar. Gritar em cima de um cavalo. Desferir golpes mortais no inimigo. O que é uma mulher comparada com um campo de batalha? Nada. Ela, pobre coitada, desesperada, atira-se para a linha do comboio.

Lera o livro, pela primeira vez, há já alguns anos. E, na altura, lera-o como um outro romance qualquer. Lera-o como lera os livros do Eça. Para ela, Anna não passava de uma heroína romântica, levemente patética, demasiado dramática, semelhante às outras, lusas, que tanto lhe agradavam. Eduarda. Amélia. Luísa. Genoveva, era, de longe, a sua preferida: má, caprichosa, calculista, impiedosa, egoísta. Há tempos, entusiasmada com os russos, caíra na asneira de voltar ao livro de Tolstoi. Tiro e queda. Desta vez, identificara-se totalmente com a pobre heroína. Achou-se mortificada. Por coisas da sua vida que ela lá sabia e que, com a devida distância e o devido respeito, que era muito, tinham certa semelhança com a da bela Anna. Só que ela não se atiraria para a linha do comboio. Chegavam-lhe os repentes suicidas que tivera por volta dos vinte anos. Por isso, para se aliviar, punha-se a desdenhar quem não a quisera. Fazia como aquela raposa da fábula que desdenhara o cacho de uvas rubis, cheias, maduras por as não poder alcançar: pensava no tamanho da pila dele e na calvície, certa, que tomaria conta do seu crânio daqui a quatro ou cinco anos. Era uma técnica rude, mas muito eficaz.

2009/11/16

Funeral

Que lindo foi o funeral do guarda-redes deprimido… Tanta gente comedidamente lacrimosa e séria. Tantas flores impecavelmente organizadas em coroas brancas e roxas. Tantos sobretudos pretos. Tanta ordem e compostura. Tanto silêncio. Se me apanhassem dentro daquele caixão havia de espantar a morte por breves instantes e dar um grito que se escutasse na lua, no inferno, do outro lado do mundo. Depois, voltava a morrer muito mais aliviadinha.

Crias

A minha filha Dá pediu-me para ir a uma biblioteca a sério. À noite trepa para a cama com o menino Nicolau e dá gargalhadinhas maravilhosas enquanto ele lhe conta as suas travessuras. O que ela gosta do Alceste e do Aniano. O meu filho mais velho, o João, que joga andebol no Benfica e diz muitas asneiras, pediu-me ajuda para escolher um livro da minha estante. Explicou-me que os livros juvenis, mesmo os que são escritos pela ministra, são uma seca. O mais pequeno, o Joaquim, comeu uma página do Monte dos Vendavais, livro que leio todos os Outonos. E bateu palminhas. Sou má esposa, má amiga, péssima jurista, razoável irmã e filha e sobrinha, mas muitíssimo boa parideira. Devo ter uns óvulos de uma qualidade extraordinária. É uma pena desperdiçá-los.

2009/11/11

Sergio Larrain


4

Aos de direita que se deixam ir na conversa dos de esquerda que, por sua vez, acham que têm o monopólio das causa nobres: no resto da Europa ser homossexual começa a ser uma coisa normal. Casam-se parlamentares, governantes, ministros. Só em Portugal não há políticos homossexuais (o Miguel Vale de Almeida não conta). Não os há de esquerda. Muito menos os há de direita. É um desconsolo. Sinal de profundo atraso e tacanhice. Em Portugal os homossexuais são todos artistas, escritores, devassos e jacobinos. Estou à espera que a modernidade nos bata também à porta e surja o primeiro político de direita homossexual. Sem medo de perder meia dúzia de votos de velhas bafientas e tias da linha de Cascais.

3

Aos que querem um referendo: Os referendos não servem para impor morais e bons costumes. A Alexandra Teté e o Vaz Pato e outros exigem ser chamados a se pronunciar sobre uma decisão que compete apenas a terceiros, não interfere nas suas vidas, não comporta para eles quaisquer custos ou encargos. Era o que mais faltava...

2

Aos que temem que se abra a porta à adopção: Está muito na moda ter três filhos. A maior parte das mulheres que conheço está divorciada, é infeliz ou entrega a educação do trio às empregadas brasileiras para salvar os casamentos. Ficam os meninos com as empregadas internas brasileiras enquanto os papás vão viajar, jantar fora em restaurantes de luxo e fornicar, com brandura, em hotéis de charme. Família é quem nos quer e quem cuida de nós. Independentemente do papá ter um pénis molinho e a mamã uma vagina lassa. De que serve uma vagina ausente e um pénis que não sabe nada de nós?

1

Aos que dizem que a altura não é oportuna, que o governo se devia ocupar do que é importante, das finanças, da taxa de desemprego, da economia: em rigor, um governo deveria ser capaz de tratar dos tais assuntos muito solenes e importantes e, ao mesmo tempo, cuidar das coisas mais comezinhas, os direitos das pessoas e outras insignificâncias. Contudo, já se percebeu, há muito, que este nosso governo não é capaz de resolver os tais problemas prioritários. As finanças. O estado da justiça. A corrupção. Essas coisas. Mal por mal, sempre é melhor que se vá ocupando com as ditas questões menores. Não sendo capaz de cuidar do que é importante é preferível que cuide de alguma coisita.

2009/11/10

Prótese

O meu pai está sentado atrás da secretária que veio de Moçambique. Fixa o monitor do computador. Olha o seu rebanho de acções como um pastor zeloso. Todos os dias, se levanta de madrugada para consultar os mercados, as cotações, os índices. Investe em derivados. Seja lá o que isso for. Arranjou um corrector goês que lhe trata dos investimentos na bolsa indiana. Telefona-lhe com frequência. Mói o desgraçado com perguntas e pormenores. Ninguém sabe ao certo quanto dinheiro tem investido, quanto ganha, quanto perde. A minha mãe só sabe que, volta e meia, ele entra na cozinha muito alegre a pedir-lhe um beijinho. É sinal que as coisas correm bem. Cheiro-lhe a cabeça como faço aos meus filhos. Abordo o assunto que me trouxe ali. Pergunto-lhe como pretende fazer a vida negra aos novos vizinhos. Ele sorri embaraçado e pisca os olhos. Mostra a dentadura nova, uma prótese fixa, que mandou fazer na última viagem. Um trabalho muito em conta, feito com todo o cuidado e saber num dentista que fica perto do mercado de Margão, mesmo ao lado de um talho que vende carne muito fresquinha. As mulheres de sari escolhem a galinha mais gorda da capoeira e, com um golpe certeiro, o magarefe trata do assunto. Imagino o meu pai de boca muito aberta no consultório enquanto o médico lhe arranca os dentes bambos. Há pedaços de algodão ensanguentados num rim de metal. As galinhas, lá fora, soltam cacarejos de pânico assim que vislumbram o cutelo.


O meu pai faz uma careta, carrega-se de azedume, lembra-se do casal que comprou o segundo andar. “Acha bem, Ana Clara, num prédio de respeito, uma pouca-vergonha destas?” Volto a cheirar-lhe a cabeça. O casal que comprou o segundo andar do prédio dos meus pais é homossexual. Dois homens jovens e discretos. Fizeram obras no apartamento e encheram-no de móveis do ikea e objectos vintage. No prédio dos meus pais já só moram viúvos e avós. Anda o prédio num corrupio. A D. Fernanda, a porteira, tem a língua seca, cheia de gretas, de tanto contar aos moradores as novidades do novo casal. Como se chamam, o que fazem, quantos anos têm, o tamanho da cama que levaram para o quarto maior do segundo direito. Mal soube dos novos vizinhos, o meu pai rosnou, entre dentes, que havia de lhes fazer a vida negra nas reuniões de condomínio. Nesse preciso instante, conta a minha mãe, a prótese feita pelo dentista em Margão ganhou vida, tornou-se assustadora, os dentes incharam-lhe na boca, muito pretos e ameaçadores, os caninos cresceram afiados, rutilantes. “Acho uma indecência. Nem sou capaz de imaginar uma indecência maior”, respondo-lhe. Beijo-o no rosto e deixo-o entregue aos seus pequenos investimentos. Há batalhas que já não merecem ser travadas.

2009/11/04

Liberdade doméstica

Olivia Arthur, Teerão

Dias Felizes

Alguns colegas de liceu e de universidade começam a ser nomeados secretários de estado e chefes de gabinete. Um deles, o A., era o meu melhor amigo do liceu. Chamava-me Aninhas. Tratava-o por Rasputine. Passámos horas ao telefone a gozar com os nossos colegas, a apontar-lhes defeitos, a achincalhar os que chegavam na camioneta das oito. Os pobres vinham ainda ramelosos, estremunhados de sono, de Camarate, Unhos, Catujal. Traziam para a escola os hábitos e as modas dos subúrbios mais feios do concelho de Loures. Havia neles uma parolice ingénua, um certo deslumbramento pela periferia de primeira classe - era a nossa -, que nos espantava e deliciava. A tentação era grande. Criados na pacatez de um bairro de classe média, apesar da educação esforçada dos nossos pais, tínhamos aprendido pouco sobre o respeito pelos outros. Éramos parvos, mas invencíveis. Os melhores alunos. Os preferidos dos professores. Pertencíamos ao clube de teatro. Eu militava no PSR, queria fazer bem aos outros, mas só se outros, claro está, fizessem parte das minorias politicamente adoptáveis. O A. não se interessava por política.
Gozávamos com os nossos colegas de forma ruim e impiedosa. A Maria Alice, gorda e suína, a permanente sebosa sempre colada ao cabelo. A Céu, que queria ser actriz de teatro e, certa vez, ousou fazer um monólogo de Beckett. Não resistiu à primeira meia hora e caiu pelo monte abaixo. A Bé do Ó, esférica também, que odiava a nossa petulância e as nossas notas. Agora tem uma loja de utilidades domésticas. A Carla Lélé, feiíssima, muito burra, unhas roídas até ao sabugo, cuspia perdigotos pelos buracos dos dentes, mas insistia em ser modelo. Apareceu uma tarde no eterno feminino da Teresa Guilherme. De cá para lá, muito tola, passeando um vestido pingão. O rosto severo, fatal. Os lábios vermelhos, o cabelo ripado. Um travesti. Um travesti medonho. Pobre Carla. Nenhum carro pararia na rua Luciano Cordeiro para a levar. Nós, ao telefone, a rir à gargalhada. Mais uns anos e, desconfio, o A., será nomeado ministro de qualquer coisa. Triste, a passagem do tempo.

2009/11/03

Adolfo

Uma certa irritação trepou-me pelo corpo acima assim que vi a cinta amarela. O José Eduardo Agualusa exortava as qualidades do novo escritor, acutilante e irónico. A acutilância é uma maçada. E a ironia já não é o que era. Tornou-se banal. Toda a gente quer ser irónica. Até eu, que aqui confesso a miséria e a derrota, em vez de me ocupar da tristeza que me rói as entranhas, volta e meia, venho armar-me aos cucos, fazer gracinhas, mostrar que sou hábil na virulência e no sarcasmo. Um horror. O livro traz também, em destaque, uma frase do Valter Hugo Mãe. Tão pomposa quanto vazia: A nova literatura portuguesa passa obrigatoriamente por aqui. Perante tantos elogios, amordacei as desconfianças e sacudi a irritação do corpo, que se espalhou pelos escaparates da livraria como uma poalha muito fina. Comprei o livro. Ao primeiro diálogo, estava na quinta página, abri as narinas e bufei. Resfoleguei como uma vaca. Indiana e sagrada. Soltei um palavrão. Bastou a inadequação de uma palavra, posta na boca de uma imigrante ilegal, para acicatar a minha intolerância. Porventura estarei a ser injusta, mas o livro, parece-me, não vale grande coisa. Os críticos devem adorar.

2009/11/02

Adelaide

Adelaide estacionou o carro em Avintes. Tirou o menino do carro. Despiu-lhe a bata aos quadradinhos azuis e deu-lhe de comer. Um pacotinho de leite com chocolate e um pastel de nata. Disse-lhe assim: Vamos ver o rio. É bonito antes de anoitecer. Caminharam de mãos dadas durante uns minutos por uma vereda de terra batida. O menino cantarolou a canção de um anúncio da televisão. O rio apareceu-lhes de repente. Ficaram parados a olhar o casario da outra margem. Escutaram o suspiro breve do dia que terminava. Quando a noite chegou, Adelaide agarrou-se ao filho e atirou-se ao Douro.

(não me sai da cabeça a mulher que se atirou ao rio com o filho.)