2009/02/27

Idade

Não sei mentir. Sou inábil, incompetente na mentira. Até quando me interessei por outra pessoa, fui a correr contar ao meu marido o que se passava. Não conseguia estar com ele enquanto a minha cabeça fugia para outro sítio qualquer. Não tenho estofo para ser adúltera. O que é triste porque os clássicos que leio e releio estão prenhes de adúlteras magnificas, esplendorosas, radiosas, luminosas, felizes. Maria Eduarda, Luísa, Anna Karenine, Madame Bovary, Margarida. Vem esta conversa a propósito dos homens que mentem sobre a idade. É socialmente aceite que as mulheres mintam sobre a idade. A idade pesa-lhes demasiado. As mulheres devem ser eternamente jovens, mesmo quando já não o são, mesmo quando já se cansaram de o ser. Por isso se enchem de cremes, de maquilhagens, fazem lifts, vão a aulas de aerobica, coloram o cabelo de cores risíveis. Acobreado e ameixa. Diga-se o que se disser uma mulher que mente sobre a idade tem o seu encanto. Aliás, uma mulher que mente sobre a sua idade está a cumprir, e bem, o seu papel social de tonta. É diferente com os homens. Um homem que mente sobre a idade é outra coisa qualquer. É patético. É o mesmo que um homem pintar o cabelo, rapar os pêlos das pernas e do peito, ir à manicure, usar meias transparentes de nailon, como um certo professor de direito, muito velho, salazarento e incompetente, que me deu aulas. É mais do que patético. É triste. Desolador. Um homem que mente sobre a idade não é homem. É um pozinho burlesco de enganar, um desenho fruste e garrido, desenhado a giz numa calçada que, mais cedo ou mais tarde, se apagará com o vento e com a chuva.

2009/02/25

Canibais

Li a notícia há dias: uma tribo amazona atraiu à sua aldeia um rapaz que vivia num povoado vizinho. Depois comeu-o. Quando os familiares procuraram o rapaz, deficiente mental, por sinal (era assim que o chamavam na notícia), encontraram apenas os restos do macabro festim: ossos roídos, o tutano chupado, um cheiro acre a carne esturricada. Os índios, de pança cheia, marimbando-se nos civilizados conceitos de integração e aculturação, arrotavam satisfeitos na sombra das palhotas. Lembro esta história cada vez que oiço os contestatários da legalização do casamento entre homossexuais argumentar que a mesma abrirá a porta a formas de organização familiar indesejáveis, como por exemplo, a poligamia.
O argumento da poligamia é rasteiro, ordinário mesmo. Sinceramente, custa-me vê-lo ser utilizado por quem tenho consideração e admiração. É o caso da Helena de Matos. É que se compara o que não é comparável. O casamento polígamo, ao contrário do casamento entre homossexuais, não assenta nem na igualdade, nem no respeito pela liberdade de cada um. Muito pelo contrário: é tradicionalmente um casamento que explora a mulher. A mulher é menorizada, vista como um objecto que se adquire, usa e deita fora. Não é por acaso que o casamento polígamo quase só existe nos países muçulmanos. Ainda recentemente o Curdistão aprovou uma lei a favor da poligamia que permite aos homens casar-se com uma segunda mulher, caso a primeira seja estéril ou tenha uma doença grave. Se o objecto adquirido for defeituoso, tem sempre o macho, esse magnífico e superior ser dotado de um falo, a possibilidade de o trocar.
A verdade é que não se conhecem em Portugal, nem na Europa, nem nos Estados Unidos, nem na Austrália, nem em nenhum país ocidental, associações que reivindiquem a legalização dos casamentos polígamos. Percebe-se que assim seja. Bem ou mal, as sociedades ocidentais já assimilaram a base dos direitos fundamentais e percebem que o reconhecimento da poligamia contende com uma série deles. Ora, ao contrário dos casamentos polígamos, o casamento entre homossexuais vem sedimentar o respeito pelos direitos fundamentais: reafirma-se a defesa da liberdade individual de cada um e, sobretudo, consagra-se a proibição de se ser descriminado em função da orientação sexual que se tem. Querer, de forma maliciosa, confundir uma coisa com a outra é intelectualmente desonesto. Não tarda nada, os contestatários do casamento entre homossexuais, tresloucados na sua homofóbica missão, estão a acenar-nos com o canibalismo das tribos indígenas. É ridículo. É.

Slumdog Millionaire

(fui ao cinema com o meu filho mais velho.)

2009/02/22

Alcibíades

Vou descansar aqui. Aqui é um bom sítio para descansar. Comprei bilhete para a última paragem e tomei o comprimido que a doutora do centro de saúde me receitou para dormir. A minha filha está sempre a dizer que a bebé dela adormece mal o carro começa a andar. O mais certo é que me aconteça o mesmo. Ainda a camioneta não saiu da gare e já eu hei-de estar a dormir profundamente. O senhor do guichet disse que a viagem até ao Montijo dura cerca de duas horas. Tanto tempo, disse-lhe eu toda contente, já a imaginar-me com a cabeça encostada ao vidro a dormir durante duas horas. É que a camioneta dá a volta por Alcochete, por causa do centro comercial, e vai parando pelo caminho, explicou o senhor do guichet. Duas horas é muito tempo. Dá para descansar o corpo e a cabeça. Hei-de dormir descansadinha. Sem ouvir os ruídos do prédio e a respiração pesada do meu Alcibíades. É engraçado, mas só depois de morto é que lhe comecei a sentir a respiração pesada. Quando era vivo dormia que nem um anjinho. Não tugia nem mugia. Quietinho e silencioso como uma estátua de pedra. Depois de morto é que começou a ressonar tão alto que não me deixa dormir. E dá umas bufas mal cheirosos que empestam o quarto todo. Diz que é próprio dos mortos, dar assim bufas com cheiro de enxofre. Coitadito do meu Alcibíades! Quem o viu e quem o vê. Quando estava vivo dormia como se estivesse morto, nem o notava na cama, agora que está morto dorme como se estivesse ainda vivo! Sempre foi um homem muito complicado. Como o nome que tinha. Alcibíades. Agora vou fechar os olhos. Depois vou adormecer. Depois vou esperar que alguém me toque no ombro, me diga, olhe, senhora, psssst, acorde, chegámos ao terminal

2009/02/18

Il Faut Savoir

Compaixão (2)

Atrás, apoiada no ombro do homem, segue a mulher. Deixa-se por ele guiar. Como se também ela fosse uma passageira. Leva a bengala pendurada no braço e deixa-a arrastar pelo chão. Foi o barulho da sua bengala que me fez levantar os olhos do profeta que vive nos milheirais do sul. A mulher é feia. Usa o cabelo branco num alvoroço como se fosse uma medusa medonha e tem um buço escuro por cima de uma boca desdentada. Ao contrário do homem não esconde os olhos. Melhor seria se o fizesse. Os olhos dela assustam. São duas covas. As pálpebras parecem ter sido cozidas com linha preta por alguém demasiado egoísta, que lhe quis roubar o mundo, sobretudo, a luz.

Percebe-se, por alguns detalhes, que a mulher cuida do que veste. Busca uma certa harmonia, um certo atrevimento. Procura não ser diferente das mulheres com quem se cruza. Usa uma saia de veludo preto, justa e curta. Pela racha, que é grande, vê-se um pedaço da combinação branca. Calça uns botins de salto, já descambados, que acentuam o seu mancar. Caminha com as botinhas descambadas que lhe apertam os pés. É-lhe doloroso caminhar. Tola, a cega que quer ser igual às outras, é o que penso. Tola e ordinária. Tenho a certeza de que se a cega, de repente, pudesse abrir os olhos cozidos e olhar em volta se deslumbraria, em primeiro lugar, com o estilo porno star de algumas mulheres da plataforma: unhas quadrangulares de gel, calças enfiadas em botas de montar, extensões capilares, maquilhagem vistosa, a ondulação bamboleante dos rabos e mamas acentuada pela roupa demasiado justa. Só, depois, repararia no azul do céu e no verde das árvores da avenida. A cega também segura com a mão um cigarro que não fuma.

Mais do que o homem, é ela que prende o olhar de quem espera na plataforma. O doloroso mancar, o chiar da bengala, os olhos cozidos a linha preta, a combinação encardida espreitando naquela greta medonha, a sujidade encoberta, o cigarro ardendo nos dedos, tudo a torna repelente. Causa nojo e não piedade. O que incomoda e se estranha. Estamos habituados a dedicar aos cegos, como aos desgraçadinhos em geral, os pernetas, os manetas, os tolinhos, os imbecis, apenas a nossa compaixão. Dizemos “coitadinhos” e sentimos alívio.

Compaixão (1)

Ouve-se um chiar que vem de longe. Levanto os olhos dos milheirais do sul, onde vivem profetas, vendedores de tubagem de plástico, meninos selvagens. Varro com um olhar lento a plataforma. Há raparigas de calças de cintura descaída que esperam, em grupo, os comboios suburbanos. Voltam aos bairros de papelão onde o bafio das casas se disfarça com pauzinhos de incenso comprados nas lojas chinesas. Dois homens conversam animadamente sobre o jogo de futebol de ontem. Os pombos cor de chumbo trazem as penas sujas da fuligem da cidade. Ao fundo, junto ao terminal poente, um casal de cegos caminha. Conheço-os de outros dias, de outras esperas. São eles que trazem consigo o chiar.

O homem usa óculos escuros para esconder o negrume dos olhos. Veste um pulôver velho, demasiado coçado e sujo. Carrega aos ombros uma mochila que parece rebentar. Não sei o que o cego leva dentro da mochila. Alguma comida, pacotes de bolachas e iogurtes líquidos, agasalhos para quando a noite chegar. A mão livre segura a beata de um cigarro que nunca leva à boca. Caminha com segurança, desbravando o caminho da plataforma. A bengala é manuseada com perícia e movimenta-se sempre na mesma cadência. Vai de lá para cá. De cá para lá. Por vezes, bate num objecto, quase sempre são os bancos da estação, e o cego é obrigado a dar um passo pequenino para a direita. Afasta-se apenas o suficiente para se desviar do obstáculo. Passa rente aos bancos, tão perto, que espero a qualquer momento uma queda, um tropeção. A proximidade com que os cegos passam incomoda os passageiros que aguardam sentados. Encolhem os pés para baixo dos bancos a fim de lhes dar passagem. Mal podem voltam a esticar as pernas. Sentem-se aliviados com a eficácia dos seus corpos: pernas que andam, bocas que falam, ouvidos que ouvem, braços que mexem, olhos que olham.

2009/02/16

Maria Adosinda

Só ao domingo o filho parecia despertar daquele torpor que desde sempre lhe tomava conta dos dias. Sempre que o Benfica jogava o rapaz procurava um cachecol que Maria Adosinda lhe tricotara há muitos anos, era ainda pequenino, e sentava-se em frente ao televisor. O cachecol não era sequer vermelho. Era cor-de-laranja, tricotado com agulhas grossas, o ponto laço e irregular. Ainda assim, na sua tolice, o filho tomava o cachecol por vermelho e enrolava-o à volta dos pulsos ao jeito dos adeptos mais novos que via nas bancadas do estádio. Quando o jogo não dava na televisão, puxava uma cadeira para perto do rádio da cozinha e, muito direito, escutava o relato. Sempre que o Benfica marcava um golo, gritava de alegria. Dizia goloooooooooo, assim mesmo, prolongado a palavra durante vários segundos. Às vezes, a alegria era tanta que o rapaz se levantava e abraçava a mãe. Dava-lhe beijos babosos que a deixavam secretamente feliz. Para lá com isso, Ricardo Jorge, e aproveitava o intervalo para lhe limpar a boca com a fralda avental.

2009/02/14

Toilet

Let’s start a publishing house
to hell with small literature
we want something redblooded
lousy with pure
reeking with stark
and fearlessly obscene
but really clean

get what I mean
let’s not spoil it
let’s make it serious
something authentic and delirious
you know something genuine like a mark
in a toilet
graced with guts and gutted
with grace

(e. e. cummings, 1935)

2009/02/12

Embalar


2009/02/11

Confissão

Não percebo a ponta de um corno dos artigos que o Rogério Casanova escreve na Ler. Triste sina, esta a de gostar de ler sem cuidar das teorias, enquadramentos, movimentos e correntes. Como eu gostava de perceber as graçolas, as subtis facécias que o dito derrama nos seus textos.

Ponto G

Dei mais duas voltas ao quarteirão para ouvir o resto da entrevista. Falavam sobre a elevação do ponto G. Um entrevistador atrapalhado, soluçando perguntas abruptas, procurava saber junto de um médico francês os procedimentos da pequena intervenção que procura salvar as mulheres do embaraço da algidez. Injecta-se, ao que parece, um ácido qualquer na zona do ponto G. O tal ponto incha, incha, incha, como a rã da fábula. Torna-se mais saliente e rugoso. Aumenta a sua sensibilidade. Proporciona-se assim à mulher mais prazer devido à pressão feita durante o coito. Foi o que o senhor doutor explicou. Na cabeça do entrevistador, desconfio, estava também a fábula de La Fontaine. Embaraçado, atordoado com a visão dessas orgásticas mulheres, que hão-de finalmente lançar guinchos sinceros de satisfação durante a penetração, perguntou várias vezes sobre a possibilidade de rebentamento do ponto G. Credo. Os homens são parvos que se fartam.

2009/02/06

Roda Viva - Chico Buarque

(ai, ai...)

Fanfarra

Também me acontece o contrário: imaginar uma voz para quem não a tem. Por exemplo, ao Luís Januário ponho-lhe a voz do Eduardo Barroso, o insuportável epicurista dos charutos e das feijoadas, o cirurgião que, com a sua voz de trombone, faz chocalhar os tímpanos de qualquer mortal. É escusado. Por mais que tente imaginá-lo com outra voz, uma coisa assim mais limpa, mais maviosa e cristalina, sai-lhe sempre da boca uma fanfarra, uma charanga cheia de cornetas e cornetões.

2009/02/05

Rãs e Sapos

Os dias estão cheios de acontecimentos importantes, daqueles que foram feitos para nos inquietar. São acontecimentos vaidosos que, à força, querem ser protagonistas únicos das notícias nas televisões, rádios, jornais e das conversas de café. Tenho os acontecimentos desta estirpe por aborrecidos. Toda a gente fala deles, dá a sua opinião, vaticina sentenças. Uma maçada. Repetem-se teorias, congeminam-se explicações, procuram-se análises lúcidas e certeiras. Há, por outro lado, acontecimentos, factos pequeninos, insignificantes que dão conta de mim, entranham-se cá dentro e fazem-me querer escrever sobre eles. Ultimamente não me saí da cabeça a fontanela do meu filho mais novo. Um dia, pela manhã, quando o fui espreitar ao berço, reparei que a fontanela pulsava. Parecia que era ali, e não mais abaixo, que o seu coração se encontrava couraçado. Afligi-me. Imaginei uma rã miniatura saltitando, histérica, no crânio do meu benzinho, alimentando-se dos seus sonhos, atrapalhando-lhe as ligações neurológicas, destruindo a estatística das sinapses. Desde então procuro o bicho que vive dentro do meu filho. Não mais apareceu. Há-de estar aninhada num canto qualquer, tremelicando as patinhas. Também o desajuste que existe entre o rosto e a voz do Carlos Vaz Marques me tem apoquentado. Durante anos, conheci apenas a voz do Carlos Vaz Marques. Vinha pelo crepúsculo, na rádio, e trazia o mundo consigo. Escutava-o e imaginava-lhe a fisionomia. Um homem jovem, pensava eu, magro, seco, esguio, com um rosto miudinho de garoto irrequieto. Até que, há pouco tempo, coisa de um mês, descobri o rosto daquela voz. Tive um baque. Um desapontamento profundo. Pareceu-me, e não quero ser injusta, um sapo. Esfreguei os olhos. O espanto foi tamanho que não mais me largou. Até imaginei uma história, com um final trágico, sobre o assunto. Esta coisa de só conhecermos uma parte de alguém tem muito que se lhe diga.

2009/02/04

Pietro


La Bella Italia

Um dia após três jovens italianos terem pegado fogo a um imigrante indiano que dormitava numa estação ferroviária perto de Roma - por puro divertimento, explicaram os rapazes às autoridades - o ministro do interior italiano, veio dizer que é preciso ser “mau” com os imigrantes ilegais. Mais do que a barbárie dos jovens italianos (a juventude de hoje é assim, move-se pelos arrabaldes das cidades, em manadas, sem eira, nem beira, sem valores ou princípios, passeando pitbules e rotvaileres, achincalhando os miseráveis e proscritos) espanta a falta de sentido de oportunidade do ministro. É que, por estes dias, trabalhadores italianos, legais, são expulsos por hooligans ingleses que reclamam para si os empregos no sector petrolífero da Grã-Bretanha. Não fora o assunto tão série e triste e não deixaria de ser irónico.

2009/02/01

La grande Jatte

Corro na margem de cá. Imagino na margem de lá, entre flamingos, pernas-longas, cegonhas, rãs, enguias, laibeques, fanecas e garças, a floresta de betão de que todos falam. Embelezada com lagos de ladrilhos azuis e caramanchões frescos, há-de ser um sítio limpo, ordenado, aprazível. As famílias passeiam a molenga dos domingos em lojas que vendem desperdícios e piquenicam hambúrgueres, pitas shoarma, pizas de carbonara e bocadinhos de sushi e sashimi. Ficam a arrotar o resto da tarde as minúcias da nova cozinha internacional. Voltam à cidade no final do dia. Vêm satisfeitos. Atravessam a ponte nos seus monovolumes de cor antracite que pagam com créditos pessoais