2008/07/02

Estendal

Chega-se um homem ao pé de mim e diz assim: a menina tem um cigarro? Reparo-lhe nos olhos encovados de espectro, na pele tisnada do sol, na barba emaranhada, na boca sem dentes. Empurra um carrinho de supermercado. Deve viver na rua. Espanta-me que saiba falar. Acho sempre que quem vive na rua acaba, mais cedo ou mais tarde, por perder o dom da fala. A solidão seca-lhes a voz. Desaprendem a linguagem dos homens. Aprendem a dos bichos. Grunhem como animais. A voz deste homem, porém, é limpa. Ele sabe falar. E está a falar comigo. Não lhe respondo. Continuo a andar. O homem continua atrás de mim. O carrinho que empurra chia. Está cheio de sacos de plástico velhos. Em cima dos sacos há um urso de peluche branco e preto. Está imundo. Já não tem olhos. Da boca sai-lhe uma linguazinha de feltro cor-de-rosa. O homem repete a mesma frase. A menina tem um cigarro? Há gentileza na sua voz. Não sou menina. Trago escondido, no bolso interior da mala, um maço de cigarros que fumo às escondidas dos meus filhos. Durante a noite, quando adormecem, cansados de tanto jogarem às escondidas, sento-me junto ao estendal da varanda e fumo um cigarro. É o melhor momento do meu dia. A roupa estendida cheira bem e está fresca. Podia dar um cigarro ao homem do carrinho. Assim livrava-me dele, da sua sujidade, da sua imundície, da sua voz límpida. Mas uma mulher grávida não fuma. Não posso dar-lhe um cigarro. Continuo a andar.

Paro na montra do talho. Tenho uma atracção antiga por talhos. Gosto de ler os letreiros que certos talhos, sobretudo nos bairros pobres das periferias, ostentam. Procuro sempre os que anunciam pezinhos de porco, miudezas, testículos, bofes. Também gosto de observar os mapas que mostram como se divide o corpo de uma vaca. Aqui a alcatra, ali a pá, acolá o acém, o pombinho, o ganso. Como se retalhará o corpo de um homem? Que parte de nós será mais tenra? Mais saborosa? Observo a montra deste talho. Não me agrada a sofisticação da oferta. Num quadro preto anuncia-se que hoje há lombo de porco recheado com frutos secos e espinafres e picanha argentina. Ando devagar. Sinto-me uma tartaruga vagarosa. Daquelas que têm mais de cem anos e chegam às praias de águas tépidas para se livrarem de centenas de ovinhos. Detesto estar grávida. Sempre detestei. Perder o controlo do meu corpo. Passar a ser um mero invólucro. Uma cabaça. Um casulo. O homem do carrinho continua ao meu lado. Chia o carrinho de supermercado como se fosse um lamento. Continua a perguntar: a menina tem um cigarro? Paro. Digo-lhe Não fumo. Ele olha para mim. Escarafuncha o nariz com as unhas sujas. Fuma. A menina fuma, diz com lentidão. Depois vai-se embora.