2008/05/07

Caídos

Debruço-me sobre o poço do quintal. As águas escuras, imóveis, parecem guardar outros mundos. Escuto, ao longe, a voz da minha prima Filomena. Cuida do grilo perneta que apanhámos ontem perto dos tomateiros. Guardado numa caixa de fósforos, o bicho desconhece as intenções da minha prima. Quer fazer um barquinho de cana e pô-lo a navegar no regato do moinho. Tenho os lábios rebentados de comer nozes verdes. Trago as mãos peganhentas das ameixas maduras. Grito para dentro do poço. A minha voz ricocheteia nas paredes circulares como uma bala perdida. Lembro-me dos caídos e dos enforcados das histórias da minha avó. No Alentejo, conta ela, quando alguém se quer matar, atira-se a um poço ou enforca-se num sobreiro. Os que se atiram aos poços são os Caídos. Os que se deixam balançar nas árvores são os Enforcados. Sempre foi assim. A minha mãe manda-a calar quando a apanha a contar-me tais histórias. Também não gosta que me conte a história do fantasma que se deitou certa noite junto dela. O que eu gosto dessa história! Assusta-me o silêncio do poço, mais do que o silêncio das árvores ou dos fantasmas. Os Caídos fazem-me lembrar bosques adormecidos. Imagino-os sossegados, tranquilos, de boca aberta, o estômago inchado como um balão, rãs esverdeadas pastando sobre os seus corpos.