2007/05/03

Dói-dói

Ontem, na estação de Entrecampos, duas mulheres beijavam-se na primeira plataforma, perto da livraria, à vista da multidão que regressava a casa. Uma mulher beijava. A outra era beijada. A mulher que beijava era baixa e gorda. Usava um casaco largo que pingava chuva e uma mochila às costas. Beijava com o corpo todo, não só com a boca, beijava com as mamas, os braços, as pernas, enroscando-se como uma trepadeira no corpo da outra mulher. Estava alheia a tudo, mergulhada num frenesim sexual dificilmente controlável. O seu corpo tremia de excitação. Se tivesse um pénis, a mulher que beijava tê-lo-ia erecto, estupidamente óbvio, como é costume dos pénis, feito pedra, feito mármore, veias azuis irisando-lhe a pele. A mulher beijada era feminina. O cabelo pintado de ameixa, com as pontas viradas para fora, marginava um rosto feio, mas maquilhado com sobriedade. Vestia um fato castanho de calças e casaco. Mal se mexia. Deixava-se beijar pela mulher trepadeira. Foi a primeira vez que encontrei um par de mulheres osculando-se assim, com descaramento e intensidade, num espaço público. Não é pois de estranhar que, absorta naquele beijo, tentando fotografá-lo com os olhos, tenha batido com a cabeça na coluna de ferro maciço que naquele preciso momento se atravessou à minha frente. Ainda dói.