2007/01/31

Tia Dé

Sentada no seu sofá branco, com uma mantinha azul a tapar-lhe as pernas, a minha tia vigia os movimentos da sobrinha pequena, não vá ela tropeçar, cair, bater com a cabeça na esquina da mesa e fazer um traumatismo craniano, era uma chatice. Chego com a minha mãe. Apesar do frio, trazemos connosco a alarido próprio das mulheres do sul. A minha filha Dimdim enrola-se nos nossos pés como se fosse uma gata. É a sua maneira de nos dizer olá. Na televisão, um crocodilo gigante descansa sobre a mornidão das areias de um mangue. Enquanto espero que o chá de lúcia-lima arrefeça, decido arreliar a minha tia, tão confortável e regaladinha no seu sofá branco. Tia, sabes que andamos a pensar em ir viver para a Índia?, digo-lhe sem tirar os olhos do terrível predador de olhos esbugalhados. Ela estremece e deixa que um silêncio tumular poise sobre a sala. Depois, gaguejando, diz Ó filha, tu és irreal, irreal, completamente maluca! E faz o gesto com o dedo. Apesar das minhas gargalhadas, ela continua. Aquilo é bom para passar férias, agora para viver! Aquela desgraça! Tu eras capaz de fazer isso aos teus filhos? E faz um ar recriminador como se morar na Índia fosse o mesmo que mandá-los para um colégio interno ou abandoná-los à porta de casa da Bárbara Guimarães e do Manuel Maria (não concebo maior desgraça para uma criança do que ter tais progenitores). Por fim, sossego-a. Ela ri-se, aliviada. Dá umas gargalhadinhas maravilhosas que parecem soluços de gente pequena. Quase lhe cai a dentadura. Mas o riso dela esconde um nervoso miudinho. Conhece-me bem a tia Dé.

Hecatombe

Cinco. Até a minha pele anda melhor. E, tirando meia dúzia de gritos matinais, acordo bem disposta. Insisto: é de desconfiar. Está para acontecer qualquer coisa terrível na minha vida. Uma hecatombe (gosto tanto da palavra hecatombe).

2007/01/30

Adriano


(É bom voltar a casa.)

C’est moi?

Não me reconheço: estou-me nas tintas para o referendo de dia onze (aborrece-me o ruído que se faz) e já tive quatro orgasmos desde que cheguei. Coisa estranha. Estranhíssima. É de desconfiar.

Hóstias de camarão

Mastigo uma pastilha com recheio de coca-cola. Estranhamente, vem-me à boca um gosto a hóstias de camarão. Suspiro. Lembro a última vez que comi tal acepipe. Recordo a D. Justina, tão simpática, e as suas intragáveis flores de maçapão. Terríveis, as flores de maçapão da D. Justina. As hóstias de camarão e os croquetes de rolão eram bons, já as flores de maçapão, apesar das suas formas tão vistosas, não. Sabiam a arsénico, creolina, aspirina. Sei lá. A custo, as não cuspi para cima da cristaleira, um mar refulgente de luz branca com vidrinhos svarosky lá dentro. Ainda bem que esta pastilha de coca-cola que, agora, mastigo sabe a hóstias de camarão. Não suportaria que tivesse o sabor das tais florzinhas de maçapão.

Roma


(Passa, hoje, na Cinemateca e eu não vou vê-lo. Porca miséria.)

2007/01/29

Anúncio

Diz assim o anúncio que há pelo menos uma semana é publicado nos classificados do Público: A recém-mamã com leitinho, oral, natural, meiguinha, faz tudo discreto, atreve-te (96 161 78 97). Acho isto de uma badalhoquice acima do normal. Até parece que esta mulher só foi mãe para poder anunciar que é uma espécie de vaca leiteira prestes a ser ordenhada por quem melhor lhe pagar. (Será que, depois de bocas que cheiram a ranço, vinho e tabaco, lhe chuparem as tetas, ela dá de mamar ao filho? Se calhar dá.)

Antena 1

Inadvertidamente, enquanto, tiritando de frio, fumava o meu último indian flake, ouvi uma tal de Miss Pearls ser entrevistada pelo palhaço do Pedro Rolo Duarte. Uma sequência de chavões, de coisinhas de nada, ditas num tom de voz meloso, peganhento, típico de quem gosta de ir às compras nas lojas vintage do bairro alto. Às tantas a tal da Miss Pearls disse qualquer coisa do género: Gosto de ter um blog, sei lá, para colocar as minhas fotografias de Nova Iorque e de Paris. Se não foi isto que ela disse foi qualquer coisa de muito parecido. Soltei logo um enorme e prolongado “foda-se!”. Ainda se fosse para por fotografias da Baixa da Banheira, do Cacém ou do Catujal… Agora para colocar fotografias de Nova Iorque e de Paris?! Credo. Há gente que não tem noção da decência e do ridículo.

(Julgava-me diferente. Afinal estou na mesma. Uma lástima.)

2007/01/26

Laurinha

“Vou ali e já volto!”, disse a mãe, enquanto sentava a menina no banco de um dos corredores do centro comercial. Depois começou a andar na direcção do supermercado. A menina ficou a vê-la até chegar perto da vitrina de uma loja que vendia animais: cães, gatos, esquilos, peixes, pássaros, porquinhos da índia, chinchilas, coelhos, papagaios, canários, lagartos, até aranhas, grandes, do tamanho da sua mão. Depois da loja dos animais, a mãe dobrou a esquina e a menina deixou de a ver. Nunca olhou para trás. Quando voltou era tarde. Muito tarde. A menina adormecera no banco agarrada a uma mochila vermelha. Um fiozinho de baba escorria-lhe da boca. A mãe pegou-a ao colo e saiu para a noite.

2007/01/24

Salaam

Nora

Tem nove anos. É bonita. O cabelo preto e ondulado. Os olhos rasgados. Segundo a tia Amália a cor da sua pele, e da minha também, faz lembrar os parsi, vindos da antiga Pérsia e instalados no norte da Índia. É boa aluna. Fala e escreve correctamente inglês, concanim e hindi. Sabe tocar piano. Gosta de ler. É exímia bailarina da baratnatyam, uma das quatro danças clássicas indianas. Invejo-a quando ela arregala os olhos para fazer de demónio. É astuta e levemente descarada. Tem a sagacidade dos animais pequenos. Mais importante: gosta de mim. No último dia, na praia de Juhu, no meio da multidão tardia, entre vendedores ambulantes, freiras, amestradores de macacos, cuspidores de fogo e vendedores de pífaros, abraçou-me e confessou que não me queria ver partir. Como vou passar um ano sem a ver? Já disse ao João que se deixe de coisas. A noiva dele está escolhida. Vive em Bombaim, é prima em segundo grau e chama-se Elaine Noronha.

2007/01/22

Lamento

Na minha secretária, o expediente atrasado de três semanas, os processos cujos prazos se hão-de esgotar nos próximos dias, pedidos de parecer sobre isto e aquilo, a revista da ordem dos advogados que folheio com manifesto desprezo. Como é possível um sujeito chamado não sei quantos da Costa Andrade, um rapazito imberbe que parece ter pouco mais de vinte anos, escrever sobre fraude fiscal com entusiasmo, puro e genuíno? Seguro um vómito que se assoma na garganta. Havia de ter sido cozinheira, jardineira, professora, malabarista, dona de casa, escritora de novelas de cordel, cabeleireira ou peixeira. Nunca isto que sou. Como é cruel, a vida. Crudelíssima. Nunca mais chegam as sete para enterrar o nariz nos sabonetes de sândalo, nos rebuçados de tamarindo e nos pacotes de tabaco de mascar que cheiram ao lado de lá.

2007/01/14

Curtorim

Sento-me no adro da igreja, que fica junto a uma lagoa cheia de nenúfares brancos. Entardece. Na escadaria, três homens falam um português correcto e antigo, um português sossegado, que não tem pressa de chegar a parte alguma, um português doce e calmo. É a primeira vez que aqui, em Goa, escuto português falado espontaneamente. Entardace. Lá dentro, o meu pai fala com o padre vigário, que usou uma batina branca e umas sandálias nos pés durante a missa. Os três homens continuam a conversar. Escuto-lhes as palavras. Percebo que falam sobre mim. Um deles aproxima-se e, em inglês, com uma delicadeza a que não estou habituada, pergunta-me se não sou familiar de um tal Alvito de Souza. Respondo-lhe em português que não, que não conheço nenhum Alvito de Souza, que sou neta da família Rebelo de Maina, a aldeia mesmo ali ao lado. O homem sorri e leva-me para junto dos outros homens. Explicam-me que conhecem bem a minha família. Apresentam-se: Rafael Viegas, Dr. Cunha Menezes e José Mascarenhas. Entardece. A conversa escorre entre nós como se nos fossemos velhos conhecidos. Os goeses têm uma identidade própria, são a simbiose perfeita entre o oriente e o ocidente. Mas têm a fragilidade das porcelanas antigas que guardam dentro dos louceiros de outros tempos. São como a fímbria do mar. Entardece. Lá dentro o meu pai continua a sua conversa com o padre vigário. Não fala em português, mas em concanim, língua labiríntica, e inglês, esse linguajar bárbaro e deslavado que tomou conta destas paragens.

2007/01/12

Margão

2007/01/11

Singbal's Book House

Quando vi o documentário da Inês Gonçalves sobre Goa, Pátria Incerta, uma mulher captou a minha atenção. Não só pela sua sóbria beleza, mas também pelo discernimento das suas palavras ao falar de Goa e da estranha coexistência de uma fé católica furiosa com o milenar sistema de castas. A tal mulher, uma goesa de sessenta anos, descobri depois, chama-se Maria Aurora Couto e, recentemente, escreveu um livro," Goa, a daughter's story." O livro não se encontra traduzido em português. Ontem, em Panjim, ao deambular perlos corredores da Singbal's Book House, a livraria onde o meu pai de dezoito anos comprava os livros escolares, encontrei-o, coberto de pó no cimo de uma estante. Sinto que esta foi uma compra muito especial. Custou apenas seis rupias.O livro anda à volta da identidade goesa e foi comprado nesta livraria tão especial. O chão escuro, de madeira corrida, foi pisado pelo meu pai jovem. É bom lê-lo na varanda, à sombra da mangueira, pela manhã, muito cedo, quando o mundo desperta e os pássaros iniciam uma sinfonia infernal. Ao longe, pela vereda, vejo chegar a Caetaninha, silenciosa e frágil.

2007/01/08

Goa

A tia Maria gostava tanto, tanto do Salazar que lhe chamavam " A favorita de Salazar"; o meu pai foi deserdado por ter feito um filho a uma preta; o meu tio Rosário gastava o dinheiro da família porque um Cristo falante lho dizia para o fazer; o tio Inácio, o irmão mais novo da família esteve quase a ser castrado, como era costume nas famílias bramanes, para assegurar a sua ida para o seminário;em Rachol, os anjos do altar têm cabelos negros e há um poço, fundo e imenso, habitado por morcegos; a terra é vermelha como o sangue; em Chandor, a sua dama, D. Aida Menezes de Bragança, vive num palácio habitado pelos fantasmas de outros tempos e, pelas janelas de carepa, espreita o adro da igreja; em cada casa há um oratório, um presépio e uma estrela iluminada; os arrozais são de um verde intenso e os palmares estendem-se, infindáveis, junto às praias; a tia Amália ensinou-me a usar o sari e nunca me senti tão bonita na vida; em Goa estou em casa.