2006/06/30

Metade

Mas não o esqueci a metade de homem que pedia no metro. E pergunto: Como se vive com metade de nós? Se nos cortam ao meio, por gangrena, por exemplo, o que fazem à metade que nos tiram? Tem essa metade de corpo direito a enterro, a funeral, a epitáfios e elegias fúnebre? Tem direito a ser chorada? Tem direito ao salitre das lágrimas dos outros? O corpo não é só o invólucro que nos transporta. Há quem menospreze o corpo. Há quem figa que o que importa é que está dentro, a alma, o espírito. Como lhe queiram chamar. Um disparate tão grande. O corpo tem uma importância primordial. Maior. Eu, antes de tudo o mais, sou matéria. Sou corpo. Sou olhos, pés, pernas, braços, seios, dedos, sou sangue, ossos, intestinos, pulmões. Sou tudo isto e mais qualquer coisa que adivinho menor. Ao olhar a metade de homem que pedia na estação dos Restauradores não pude deixar de sentir algum alívio por me ter inteira. Tenho-me a mim. Tenho o meu corpo. Já não é mau.